quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Rever Verdoux





Haveria um “em si” do cinema, do qual decorreriam regras e exceções? Quanto mais se dissemina isto, mais dificuldade tenho em crê-lo; o cinema, ao final das contas, não é nada além senão aquilo que fazem os cineastas, e a exceção- se ela possui o nome de Eisenstein, ou Buñuel, ou Chaplin- é uma exceção talvez, mas que consiste na conquista, e que não precisa se preocupar com a especificidade do cinema, já que a funda, assim como Bach ou Schoenberg preocupam-se menos em instituir uma escritura universal que em explorar sua própria linguagem, ou Michelangelo em servir mais à pintura ( ou o cinema) que em se servir dela; a arte prefere ser capturada que cortejada. E estamos todos à vontade para admirar o aço cromado ou a pátina com que um Walsh, Dwan, Tourneur, Minnelli  polem suas engrenagens; quais ouropéis  idiossincráticos suspendem-se sob o dorso de suas obras, a elegância e a desenvoltura com que as transportam.; cada vez mais me é difícil não  pensar, antes de tudo, no peso destas obras.
Quem é Chaplin? Um homem livre. Verdoux, quinze anos depois, é primeiramente isto: o filme de um homem livre ( para retomarmos a fórmula de Rossellini, falando de Um rei em Nova York). Exceção esta espécie de homem; regra, pois o Chaplin do Pelegrino ou de Verdoux, o Buñuel de Nazarin e do Anjo exterminador, o Renoir da Regra do jogo e de Elena, mesmo o Brooks de Elmer Gantry, o Rossellini de Vanina, o Mizoguchi das Irmãs de Gion: eis alguns cineastas que possuem o fato  em comum, deixando de lado os seus dissensos, de não serem simplesmente “metteurs em scène”; antes aqui se nota uma prontidão do toque que pode passar- e com frequência passa – por secura ou pobreza, um perfeito pudor das intenções que toma o esquematismo por máscara, e dissimula sob a rapidez do traço a riqueza das contradições profundas- um jogo infinito de trocas entre as significações e os meios. Verdoux é Carlitos; que o seja, mas também é Verdoux.

Mais adiante: qual o fito do cinema? Que o mundo real, tal como se oferece na tela, seja também uma idéia do mundo. É preciso ver o mundo como uma idéia, é preciso pensá-lo como concreto; dois caminhos, ambos com seus riscos. Quem parte do mundo e nele se instala arrisca-se fortemente a não atingir a idéia: estes são os perigos da atitude do “puro olhar”, que os leva a se submeter ao presente, a aceitá-lo tal e qual, a contemplá-lo, como se diz; mas tenho medo de que esta contemplação seja semelhante à exercida pelas vacas que olham os trens que passam, fascinadas pelo movimento ou pela cor e com pouca chance de um dia compreender a significação destes objetos de fascinação, e assim fazê-las se encaminhar antes para a direita que para a esquerda. Partir da idéia, risco inverso: restam neste território nove entre dez, e o campo da História ( do cinema) é semeado pelos cadáveres destes filmes que todos os exercícios de respiração artificial só conseguiram animar no tempo de seu lançamento.

Mas estes cineastas ( para voltarmos a eles), partindo também ( parece-me) da idéia, ou do esquema ( e o arranque é freqüentemente ingrato, árido, sem brilho) recuperam pouco a pouco o real; é porque este esquema não é um esqueleto, mas figura dinâmica, e a justeza de seu movimento, de sua dialética interna, recria paulatinamente, sob nossos olhos, um mundo concreto: outro e explicado, mas ainda mais ambíguo, por ser desta vez idéia encarnada, e logo depois real trespassado de sentido. É também pelo fato de que a  idéia já é idéia do mundo, visão conceitual  ( espetáculo ou metáfora): uma imagem-idéia- seja um grupo de convidados bloqueados num salão, ou o caçador estrebuchando como um coelho, ou o cadafalso diante do convento- ou seja mesmo um “personagem”, tão pleno de contradições que o filme não consista em nada senão no desvelamento metódico destas. Verdoux confia uma multiplicidade de significações não tanto ao jogo de cena quanto à agilidade do ator em inventar, dir-se-ia, diante de nós: mise en scène em torno do jogo do ator principal, e confundindo-se com este jogo. Pois a ação do ator é criação contínua, um motor e um olhar ao mesmo tempo: Chaplin age e faz agir, mas se contempla agir e contempla seu ato através dos outros; ele organiza no espaço da tela uma deflagração do sentido, experimenta um agir julgado por suas conseqüências, de que ele pesa diante de nós, à medida em que o filme se desenrola, as fases e os objetivos: processo de homem de ciência.

Chaplin, Buñuel, Renoir, “filhos deste século científico”; sua démarche é a do físico ou do entomologista: o homem é para eles objeto de estudo e de experiência, mas este homem é antes de tudo eles mesmos. Dialética implícita em Renoir e Buñuel, que o gênio de Chaplin consiste em manifestar em plena luz- ao integrar o seu mito a sua pessoa, sua “lenda” ao seu mito, a História a esta lenda, e  por um sistema de reações em cadeia, obter um corpo novo, irradiado por sua atividade, assim como a História, capturada pela armadilha do mito, revela suas mitologias. 

Reconstituição de um objeto “de forma a manifestar nesta reconstituição as funções deste objeto”: definição, segundo Barthes, da atividade estruturalista, que comanda toda a arte moderna. Assim,  Verdoux é Landru desmontado e reconstruído por Chaplin-Carlitos; simulacro, rigorosamente não-simbólico e sem profundidade, mas formal: “nem o real, nem o racional, mas o funcional”.

A vontade de infligir significação, afirmada pelo próprio recuo que Chaplin assume bruscamente em relação ao papel que interpreta; este recuo consiste no ato de um homem, e é equivalente ao de Brecht diante de Mutter Courage, de Fautrier diante de seus Otages, de Boulez para com suas Estruturas:  o sentido passou por ali, ele foi inscrito; a obra guarda o movimento desta passagem. Esta passagem é o seu movimento- a constatar e retomar.


Jacques Rivette, Cahiers Du cinema, número 146, agosto de 1963


Tradução: Luiz Soares Júnior.









Jacques Rivette, Cahiers Du cinema, número 146, agosto de 1963

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