quarta-feira, 4 de junho de 2014

Nota sobre Jacques Tourneur



O mundo dos filmes de Jacques Tourneur é o mundo da tenacidade e da surpresa contínuas. Mas a surpresa contínua ( surpresa de existir, surpresa de não se saber feito para nada neste mundo, e  no entanto obrigado a assumir um papel) destina-se a uma ausência – uma ausência total- de surpresa. Só resta a tenacidade.

Esta mesma tenacidade, virtude não exaltante por excelência, não consiste em uma qualidade moral dos personagens, uma faceta de sua personalidade: alguma coisa que poderia subitamente desaparecer de dentro deles, abandoná-los, e sobretudo deixá-los em paz; não, esta tenacidade é a própria substância de que são feitos. Em cada um de seus atos, dir-se-ia que são invencivelmente inspirados pelo conselho que o herói de uma das ficções de Borges dirige a seus eventuais sucessores: “ Eu prevejo que o homem vai se resignar a cometer empresas cada vez mais atrozes; logo, não haverá nada além de guerreiros e bandidos; eu lhes dou este conselho: aquele que se lança em uma empresa atroz deve imaginar que já a tenha realizado, deve se impor um futuro tão irrevogável quanto o passado”.

Quem são “estes personagens”? Quase nada; sombras ativas; homens de ação que não tem nada para dizer nem comunicar- que não possuem nada, nem mesmo esta liberdade ilusória ( a esperança, o desejo, o presente que, insensivelmente, torna-se passado) onde se comprazem os outros homens; eles, de uma vez por todas, estacaram o seu destino ( id est: decidido e imobilizado). Entrevejo duas outras formas de evocar a emoção que dispensam- correspondentes igualmente a duas hipóteses que tem servido de base a alguns contos fantásticos contemporâneos: 1) estes personagens combatem, mas é como se o desenrolar deste combate se passasse em um mundo, e as conseqüências em outro: elas não lhes dizem respeito; eles combatem, é tudo. Aquilo que empreendemos e as conseqüências de nossas empresas pertencem a dois mundos diferentes, sem contato entre si; 2) estes personagens combatem, mas ao combater, ao agir, eles nos sugerem que sua ação, sua individualidade, e por extensão toda ação, toda individualidade possuem sua própria dimensão temporal- sua própria temporalidade- que progride paralelamente a todas as outras, que não coincide com nenhuma destas.

São por isso pessoas tristes? Eu creio que até mesmo a tristeza lhes parece algo supérfluo. Ao invés disto, eles possuiriam, em estado latente, uma espécie de humor sinistro, exercido sobretudo contra eles mesmos, humor este que lhes permite ver com uma implacável precisão as inumeráveis etapas, estratagemas, formalidades e obstáculos através dos quais são obrigados a passar; que lhes possibilita ver igualmente, com a mesma precisão, esta galeria de monstros, de maior ou menor envergadura, que encontram em seu caminho- criaturas simiescas, inquietantes, repugnantes ou bufões com os quais lhes é necessário se acumpliciar, até acabarem por se confundir com eles. Humor sinistro justamente, por não achar graça em nada.


Poucas obras souberam dissimular a este ponto a ligação que as relaciona a seu autor. Como Jacques Tourneur, filho de Maurice Tourneur ( cineasta eclético, pouco conhecido e às vezes apaixonante), nascido em França, cuja infância, juventude e aprendizado cinematográfico passaram-se em idas e vindas entre a França e os Estados Unidos, onde ele se instalou definitivamente com 34 anos, e onde desde então tem se exercitado na confecção de vários gêneros, de todos os orçamentos e metragens; onde enfim chegou a compor uma obra tão secreta e intensa, quase experimental, que exerce sobre o espectador uma ascendência às vezes tão forte, e cujo rigor- sua principal característica- constitui-se igualmente em fonte de prazer e de perplexidade: eis aquilo que é quase impossível de explicar. Nem seu pai nem a França parecem ter tido sobre ele uma influência tangível. É preciso buscar em outros lugares: talvez na própria obra.

No prefácio de seu livro “A Idade do homem”, Michel Leiris é levado a fazer uma distinção banal, mas interessante, e  cujos termos podem ser retomados: “Entre tantos romances autobiográficos, escreve ele, diários íntimos, memórias, confissões, que conhecem desde há alguns anos um extraordinário sucesso ( como se da obra literária negligenciassem a dimensão de criação, e  buscassem reter apenas a da expressão, e assim visassem, não o objeto fabricado, mas o homem que se oculta- ou se mostra- atrás dele), a Idade do homem vem portanto se apresentar...” Retomando esta terminologia, poderíamos dizer que a originalidade da obra de Tourneur- é preciso de qualquer modo designá-la como tal, de uma forma ou de outra- consiste no fato de que a parte da expressão é completamente apagada, em proveito da criação. Criação ex nihilo, então?  Mas sabemos que deste gênero de criação apenas Deus é capaz ( e mesmo assim...). Não. A questão permanece: como a parte da expressão pode ser apagada sem que talvez a parte da criação não se apague da mesma maneira- e, nestas condições, como pode-se pretender ainda que exista aí uma obra? Eu vou responder, não por efeito de alguma teoria expressa acima, mas pela simples observação de seus filmes, que Tourneur pôde levar adiante esta experiência ( pois se trata de uma experiência, com o grau de risco comum a todas as experiências: não dar em nada): 1) apagando-se atrás de seus personagens; 2), não escrevendo os seus roteiros; 3) explorando metodicamente o ganho( acquis)  do cinema de aventuras tal como praticado em Hollywood, e em particular a recusa de que este ganho se constitui; 4) acrescentando a estes alguns de sua lavra.


Estes pontos necessitam de alguns comentários.


1)  Apagar-se atrás de seus personagens é impossível em cinema sem que haja uma grande densidade, uma grande coerência plástica na descrição do universo que circunda o personagem. À menor falha nesta descrição, o ponto de vista da expressão toma a frente ao da criação, na consciência do espectador; a menor escapada- por efeito de artifício, imperícia ou por negligência- do personagem para fora de seu quadro de ação é imediatamente interpretada pelo espectador como um “signo” expressivo da mentalidade do autor.  Diz-se- esta é a fórmula consagrada- que o autor se traiu. Este esforço de recreação plástica deve, evidentemente, ser retomado do zero em cada filme. Ele exige um imenso talento, e nisto não há trapaça possível. Este grande talento existe na obra de Tourneur: na selva monótona de Appointement in Honduras, na austera e grandiosa paisagem urbana de The fearmakers, no miniaturismo charmoso dos três sketches de Frontier Rangers, etc, temos uma série de universos coerentes, fechados e que caem como uma luva em seus personagens.


2) Não escrevendo seus roteiros. É claro que Tourneur não se recusou a escrever seus roteiros, mas a coação a que esteve com freqüência submetido ( coação esta aceita por ele) de não escrevê-los, faz parte das condições da experiência. Um grande número de roteiros aliás podem lhes ser convenientes: apenas lhe é necessário, no interior de um circuito plástico muito particularizado, um esquema de ação linear, muito movimentado- muito lógico também, e cuja mise en scène possa ainda mais acentuar esta lógica. Ora, é muito mais fácil captar e acentuar a lógica de um roteiro que não se escreveu ( que apenas corrigiu-se), ficando menos sensível a eventuais “riquezas” marginais da história, riquezas estas que frequentemente possuem apenas um caráter parasitário.


3)  As aquisições do cinema americano de aventuras fornecem a matéria destes roteiros. Em nenhum outro lugar senão na América ( Holywood) existe uma herança cinematográfica que possa ser utilizada sem a necessidade de retoques. A obra de Tourneur é neste sentido essencialmente americana, no sentido de que ela necessita, para dar certo, de uma herança já assentada, que ela ali encontrou, e que não poderia ter à sua disposição em nenhum outro lugar. Dito isto, nada se encontra ali que se possa julgar tipicamente americano, nada que corresponda a uma espécie de cor local; talvez aí esteja a razão- e esta já seria uma explicação- deste caráter desolador e pungente que habitualmente possui, característica pela qual é facilmente reconhecível.


Toda aquisição, qualquer que seja esta, de arte ou de civilização, vale sobretudo e se define paradoxalmente por suas recusas. Uma invenção que não existisse sob o império de certas barreiras, uma liberdade sem freios constituem-se em perspectivas do espírito, em tristes e não criativas perspectivas do espírito. O cinema americano tentou sempre que possível evitar esta tristeza, assim como tentou evitar esta outra tristeza evocada com bom senso por Mankiewicz: “Quer se trate de uma peça ou de um filme, devemos fazer o público pensar apesar do público...O público vem, e se você é um bom dramaturgo, ele sai pensando naquilo. Esta é na minha opinião a marca de nosso sucesso. Mas se o público vem para pensar, então tudo se torna um pouco pedante, um pouco triste também.”

Esta “herança” se caracteriza notadamente pela recusa do psicológico em proveito do trágico; sobre a recusa da estrutura livre em proveito da estabilidade dos gêneros; sobre a recusa da formulação literária e discursiva da idéia em proveito de sua encarnação em uma variedade real de episódios, peripécias, itinerários, metamorfoses, etc. Com o auxílio de nuances ( para apercebermo-nos, basta escrever: prioridade do trágico sobre o psicológico, prioridade dos gêneros sobre a estrutura livre...) e também de uma grande inteligência, a maioria dos cineastas americanos conseguiram se exprimir perfeitamente em função desta herança. E eles o fizeram segundo o sentido de duas direções principais: descoberta e exaltação de um equilíbrio vital a partir de certos aspectos- cuidadosamente selecionados- da vida e da história americanas ( linha Walsh); adoção de um ponto de vista crítico sobre um tipo de sociedade americana- em geral aquela que o autor tem sob os olhos-, vista como o lugar de eleição de certas aspirações permanentes e maléficas do homem ( linha Lang). A obra de Tourneur é tão distante de uma como de outra.


4)  A noção de gênero, por si mesma, já possui no cinema americano uma tendência a se esvaziar de seu conteúdo, psicológico, social ou moral para deixar lugar apenas a um elemento mítico, e às vezes- mais raramente- erótico, que lhe resume ou estimula o sentido. Tourneur esposa esta tendência, mas lhe tira ainda toda finalidade mítica ou erótica. Chegamos assim a este “vazio bariométrico da mise en scène” de que falava André Bazin a propósito de Beyond a reasonable doubt, ou ao célebre “punhal sem lâmina a que falta o cabo” de Lichtenberg? Não o creio. O que resta de uma tal experiência é a beleza- beleza de arquétipo, escultural e plástica, e quase inverossimelmente bela- da ação no momento em que ela se realiza, em que ela marca, usa, faz e desfaz aquele que a realiza; beleza de forma alguma hipotética aliás, pelo contrário firme e compacta, e cujas qualidades são intensificadas pela ausência de justificação e de perspectiva com que é captada; beleza de forma alguma nova igualmente ( aliás, ela existe de tempos em tempos na maioria dos filmes, mas dispersa, casual, enquanto que aqui constitui o núcleo da obra) e que vamos encontrar, por exemplo, em um espírito e sobre um solo totalmente diferente, no “L’Enlèvement de la Redoute”de Mérimée.

O Eros pálido e distante dos filmes de Tourneur parece-nos tão alheio ao Eros flamejante de Walsh quanto do fúnebre de Fritz Lang. Para falar a verdade, não se encontra no mesmo plano que eles. Inexpressivo, perfeitamente incorporado aos conflitos dos personagens, no interior dos quais ele serve com freqüência de pretexto a algum novo subterfúgio ou estratagema; é o Eros típico de um autor que, ainda uma vez, recusa uma ocasião de se deixar trair, e é talvez ainda mais tipicamente, o Eros da verdadeira ação e da verdadeira aventura, aquele que nos leva a pensar em uma frase de um romance de Pierre Benoit ( que eu não pude encontrar novamente), onde o autor nos diz que é preciso ter atravessado as areias do deserto, ter sentido sede e sentido medo, ter acreditado mil vezes na iminência de sua última hora, antes de se arriscar a emitir um julgamento sobre a importância exata do erotismo no homem.


Com o elemento erótico, desaparece igualmente o elemento mítico de cada gênero. O quadro respectivo do western, do policial, do filme fantástico convém a Tourneur, mas apenas na medida em que se mostra propício à revelação desta tenacidade que é a experiência de base dos personagens. ( Sobretudo, evitemos nos fixar sobre a palavra, fazer dela um tema ou qualquer atitude inepta do tipo; aliás, procurando, encontraremos sem dúvida uma palavra melhor). Eu quero simplesmente precisar que os mais belos momentos de seus filmes sãos em dúvida aqueles em que o meio e os humores dos personagens- e que não são nada além de um meio ou um humor: aqui podemos nos referir à camaradagem cavalheiresca de Joel McCrea em Wichita, ou ao egoísmo cínico de Victor Mature em Timbuktu- começam a minguar, retomam os personagens no puro presente ( o presente paralisado, o presente implacável) de suas ações, tornando-os rigorosamente intercambiáveis.

A contribuição específica de Tourneur aos diferentes gêneros consistiria aqui e ali em introduzir uma ponta de fantástico, se quisermos limitar esta contribuição ao ritmo da narrativa, feita de uma sucessão irregular, depressiva, não dinâmica, de instantes de lassidão e de instantes de terror, onde aliás aparece curiosamente o rigor do autor. É porque tratamos aqui de um autor que tira os contrastes de que precisa do seu próprio tema, e não por alusão a elementos que lhes são estranhos- método defeituoso e muito disseminado, no qual vamos achar a causa do envelhecimento precoce de tantos filmes famosos. Ele jamais irá, por exemplo, opor à aspereza da ação algum ideal contemplativo de que seus personagens não tem a menor necessidade, e  com razão ainda maior, a nenhuma nostalgia. Ele prefere mostrar que a ação possui seus tempos mortos, seus próprios contrastes, particularmente este contraste entre a lassidão e o terror que sabe pintar admiravelmente; pois o ciclo da ação- medo, fadiga, sofrimento e morte- , que é um ciclo terrificante, é também um ciclo monótono. Sente-se isto através dos filmes de Tourneur.

Sentimos também outra coisa. Durante toda a sua carreira, Tourneur teve à sua disposição alguns dos mais prestigiosos rostos de homem de ação do cinema americano: Robert Mitchum, Robert Ryan, Joel McCrea, Ray Milland, Dana Andrews- sobretudo Dana Andrews- e a menor coisa que se pode dizer é que ele lhes soube render justiça. O interesse destes rostos reside em boa parte em uma certa “inexpressividade” que lhes é própria e que exprime mais coisas que qualquer invenção de roteirista ou de dramaturgo. Sobre o rosto de Dana Andrews, em particular, se inscrevem e se cancelam verdades de ordem ao mesmo tempo elementar e geral, que constituem uma outra forma de resumir os propósitos de Tourneur. A ação é, sob estes variados aspectos, em seus perigos vários, uma forma de vileza, uma escravidão. Comprometimento, escravidão em relação à natureza antes de tudo, que esculpi, desenha nas carnes aquilo que ela quer e como quer; e, paradoxalmente, os filmes de Tourneur são aqueles onde, do começo ao fim, temos a mais forte impressão de ver envelhecer os personagens- revanche do Tempo sem dúvida, expulsado artificialmente da mentalidade dos protagonistas. Comprometimento também, renúncia em relação àquilo que queríamos ter sido, querido fazer, às pessoas que queríamos ter encontrado, aos sites onde queríamos ter vivido; renúncia sobretudo a tudo aquilo que queríamos ter aprendido e descoberto. ( O herói de Tourneur, tentemos dizê-lo sem literatura, é um herói rodeado de fantasmas e de mistérios insolúveis, de mistérios que ele renuncia pouco a pouco a resolver.). Assentimento, em definitivo, aos nossos esforços, nossos sofrimentos. Paro por aqui.




Os melhores filmes de Tourneur são: Circle of danger, Way of gaucho, Appointment in Honduras, Wichita, Night of the demon, The Fearmakers, Timbuktu. Dentre estes, os mais característicos: Appointment in Honduras, Night of the demon, The Fearmakers. 



Jacques Lourcelles, Présence du cinéma, 22-23, outono de 1966. Allan Dwan, Jacques Tourneur

Tradução: Luiz Soares Júnior.

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