sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Os esqueletos da imagem: o enigma do espaço em Dario Argento, por Jean-Baptiste Thoret


Característica da estética barroca, o risco de transbordamento – ou mesmo de um estilhaçamento da forma pela matéria- se traduz em Argento por um jogo constante de dissociação entre o contorno e a figura, entre a silhueta e a efígie. Em seus filmes, ambas não coincidem forçosamente, e testemunham um transbordamento do quadro pelas matérias que o constituem. Para além das determinações psicológicas de seus personagens- o que é um esquizofrênico senão a existência de duas personalidades no seio de um mesmo corpo?- , é constante que um mesmo contorno abrigue duas formas ( como neste plano em Tenebrae, onde o assassino se destaca da silhueta do inspetor Giermani: dois corpos no interior de uma mesma silhueta); ou que uma mesma forma preencha diversos contornos ( em Suspiria, Helena Markos, figura refratada em diversos elementos, não compõe uma figura homogênea, apesar da aparição final de um corpo decaído); ou que uma cor escape de sua forma e se transforme numa mancha móbil ( a fuga de Sara em Suspiria, escandida por deslocamentos de manchas luminosas); que uma sombra se desloque sem referente corporal ( a seqüência da piscina em Suspiria). Ou ainda que uma função se torne autônoma e invista momentaneamente o corpo de um personagem: como neste plano de Gabriele Lavia em Inferno que, alguns segundos depois da queda da eletricidade, parece habitado pelo Mal, ou o de Karl Malden em Gato de nove caldas , quando Giovani por um instante o toma pelo assassino, quando ele volta ao mausoléu. Em Suspiria de Profundis, Thomas de Quincey descreve assim as Três Feiticeiras: “Quem são estas irmãs? E o que fazem? Deixem-me descrever suas formas e sua presença; se fossem uma forma, seria a que flutua sem cessar em seu contorno; se fosse uma presença, seria a que sem cessar avança para o primeiro plano, ou recua por entre as sombras”. O movimento avança sempre sobre a forma que o contém: ponto essencial de uma estética que busca desestabilizar o mundo, fazê-lo sair de seus limites. Nos filmes de Argento, não sabemos para onde vai o mundo, porque ignoramos o que o sustenta.


Em Inferno, no entanto, uma seqüência fornece um modelo rigoroso da forma como este procede. Incomodado com a proliferação de gatos em sua loja, o antiquário Kazanian decide uma noite afogar em um lago da cidade alguns gatos que conseguira capturar. A sequência se abre com três planos compostos segundo um mesmo princípio simétrico. Uma linha de horizonte ( uma ponte, bosques) cinde o quadro em duas partes iguais: no alto, uma visão “cartão postal” de buildings nova iorquinos , depois a de um vendedor ambulante embaixo, seu reflexo num lago circundado por vegetação. Imagens de um mundo indissociável de sua dimensão muda e ativa, de sua dobra, em suma. Pois a linha der contato separa menos as duas partes do quadro do que as coloca em relação: entre o moderno e o arcaico, entre o sólido e o líquido, entre o macrocosmo ( a lua) e o microcosmo ( o lago e os ratos), entre a realidade e sua imagem, algo vai circular em segredo, e segundo um processo indiferente às leis da lógica e da causalidade. A composição bipartida do plano ilustra um dos princípios matriciais do cinema de Argento, que estabelece contrastes com o propósito de experimentar a síntese ( figurativa, plástica, cinematográfica), que imagina novas figuras a partir de elementos a priori antitéticos. Uma vez que a configuração da sequência foi estabelecida- dois motivos de quadros que se opõem e se respondem-, uma série de planos precisa a natureza de sua relação: a água dos esgotos da cidade que deságua no lago designa uma dinâmica de troca ( de um termo a outro), enquanto os ratos, símbolos límpidos do contágio, a precisam. A partir daí, cada evento que advenha em uma das metades do quadro vai se atualizar, por contágio, em outra. Paralelamente à morte de Kazanian ( este cai no lago, é devorado pelos ratos, depois assassinado por um vendedor ambulante apercebido no começo da seqüência), uma outra série de planos mostra a progressão de um eclipse lunar, como se este signo de mau agouro se atualizasse na parte inferior do quadro ( lembremos aqui que para Paracelso a lua envenena a água na qual se reflete).


Assistimos então a uma montagem que estabelece entre planos ou elementos do quadro correspondências inéditas ( o afogamento dos gatos desencadeia a morte do astro, que se “realiza” através da morte do personagem). O equilíbrio entre o mundo e sua dobra é rompido em proveito de uma nova lógica, fundada sobre princípios alquímicos, próximos do pesadelo: a indistinção do macrocosmo ( os ciclos lunares e a influência cósmica) e do microcosmo, do corpo e do espírito, da causa e do efeito. O lago, enfim, cheio das sevícias inflingidas por Kazanian aos gatos da cidade, condensa uma energia negativa que se transforma em ação assassina. Este exemplo ilustra também o status particular desta seqüência no cinema de Argento: única por possuir seu próprio modo de funcionamento, a ponto de constituir às vezes um pequeno filme autônomo dotado de uma estrutura a ser decifrada; e um esquema cuja lógica tem de ser respeitada, na medida em que a seqüência também se integra a um conjunto, o filme. A arte do desvio é o fruto deste paradoxo: um desejo constante de escapar do continuum fílmico e o dever, apesar disso, de se relacionar a este ( de s’y raccorder).


Em um artigo, Stéphane Bouquet opunha um cinema do plano a um cinema do fluxo; no primeiro, “um cinema para o qual encenar é desenhar (...), e portanto organizar o inorgânico, o informe, o não-estruturado, para finalmente construir um sentido ou uma emoção”; já o cinema do fluxo é “subordinado a um princípio de desfilamento permanente e contínuo” das imagens, que visaria a “gerar ritmo onde outros geram sentido”. O cinema de Argento se situa precisamente na encruzilhada destas duas concepções, como se portasse em si os traços de um cinema que teria trocado a arte da mise en scène ( da fixação) pela da movimentação ( mise en mouvement). Fixar um plano, ou dizendo de outra maneira, desenhá-lo e regrá-lo, fixar um espectador como se fixa um alvo. Para ele, o combate entre plano ( e tudo o que este supõe: vitória da Razão, da ordem, do discurso) e fluxo ( poder absoluto da sensação e do movimento) não é regrado. É mesmo o equilíbrio entre estas duas formas de considerar a mise en scène que esclarece a natureza de suas imagens e do movimento que as anima. Do plano, este conservou uma relação dialética com o mundo: potências distintas existem e se opõem, por que negá-lo? Do fluxo, seus filmes possuem a presciência: a poderosa vida orgânica das coisas, seus tônus, seu fantasma, não seriam mais capitais que as próprias coisas?


Dario Argento seria então um cineasta da ligação, que tentaria encontrar um ponto de equilíbrio entre a vontade de “por o mundo em compartimentos” ( ou em planos, o que dá no mesmo) e o desejo de se abandonar às potências invisíveis que presidem a seu destino. O “por em relação” ( mise en rapport) nele é um procedimento central: nada se opõe, tudo se comunica, como em um pesadelo- os níveis de realidade e de tempo, os espíritos, as situações, os espaços; basta compreender a natureza da relação que se opera entre eles. Daí a recorrência das passagens, corredores, halls, e de tudo o que permite relacionar em seu cinema. Daí talvez esta sensação de abalo sísmico ( tremblement): o plano vai resistir aos movimentos que o inflam?


Esta dualidade explica a importância dos cenários e particularmente da arquitetura em seus filmes: estilo gótico em Inferno, metafísico e hipperrealista em Profondo rosso, Art Déco e expressionista em Suspiria. Em Suspiria, o assassinato de Daniel, o pianista cego, dá-se no centro de uma grande praça, composta por imensos prédios e colunas maciças. Quando o personagem penetra no lugar, o espaço subitamente se anima: gemidos e ruídos estridentes surgem na trilha sonora, sombras e manchas luminosas desfilam nas fachadas, até que um movimento de câmera- encarregado de reproduzir o ponto de vista ( ou o espírito?) de uma gárgula- fende o ar até o centro da praça. Tudo concorre aqui a movimentar o espaço, a transmitir a sensação de uma atividade espiritual ou orgânica, como se no coração destas estruturas imóveis palpitassem forças vias e desconhecidas, “ a sensação estranha de que neste momento funestas constelações deveriam estar se movendo sob uma camada desconhecida” 1. Se Argento concede tamanha importância à arquitetura, é precisamente porque esta lhe permite jogar com a oposição entre fixidez e movimento, entre o inanimado e o vivo, entre a profundeza e a superfície: o exterior não revela o interior mas o dissimula, o mascara.


O universo parece com efeito submetido a forças subterrâneas que abalam suas fundações, e conduzem às vezes à destruição: Suspiria e Inferno acabam com o incêndio e desmoronamento de redutos maléficos, como o colapso final que evoca a queda da Casa de Usher na novela homônima de Edgar Poe. Para Argento, a verdade do mundo reside em sua dobra: “O mistério dos seres se oculta em sua aparência, ou mais precisamente na tautologia metafísica de sua forma física. Pensar a coisa, tentar captar-lhe o mistério é passar de uma forma para outra, do corpo carnal ao corpo sutil (...): não assumir a evanescência da aparência mas ao contrário levar a aparência à incandescência para transformá-la em representação”. 2 Não há portanto incompatibilidade de natureza entre a essência e a aparência, entre a cena e suas coxias, mas um jogo permanente de troca, de ecos e de relances. O cinema de Argento só visa o mundo sob o horizonte do Grande Segredo que este dissimula: em superfície ( daí a recorrência do trompe l’oeil) como em profundeza ( o uso da plongée), tudo nele parte e chega em uma imagem, em uma forma. É por este motivo que o barroco de seus filmes é um barroco inquieto, sombrio, que não se desdobra para cima mas para as profundezas, tanto espaciais quanto temporais, instâncias pesadas pela presença dos mortos. Os mortos são os cadáveres que ressurgem à superfície ( o corpo putrefato com o qual topa Rose Elliot no começo de Inferno, ou aquele mumificado que Mark Daly descobre em Profondo rosso); ou as camadas do tempo, que os assassinos pensavam enterradas no fundo de sua memória, e que explodem na superfície do tempo presente. Nos filmes de Argento, não cessamos de acertas as contas com os meios originários. “Os mortos vão enfim reencontrar os vivos!”, grita Helena Markos no final de Suspiria. Um ruído de relâmpago, um clamor surdo, gemidos insistentes, tudo concorre para replicar o mundo com um rumor inquietante, ou mórbido. Daí esta impressão permanente de um poder ascendente que se agita sob o plano e ameaça absorvê-lo: uma chuva de vermes que se abate sobre bailarinas ( Suspiria), uma nuvem de insetos que encobre uma casa ( Phenomena), ou camundongos que remontam do subsolo ( Inferno) são signos de um processo de deliquescência e de infiltração. Em Argento, todo plano é ameaçado de fuga pelo mais insignificante de seus recessos, de suas fendas ou de seus interstícios. Todo plano é entreaberto.



Jean-Baptiste Thoret, Dario Argento, mágico do medo, Cahiers du Cinéma Auteurs.


Notas:


1. Giorgio de Chirico, citado por Paolo Baldacci em Chirico, o metafísico, 1888-1919

2. Mylene Buydens, A imagem no espelho.


Tradução: Luiz Soares Júnior.


quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Francisca, por Serge Daney


" Estão ambos de pé, face a face.


Camilo - Não. Mas eu sei o que repudio. Tu não o podes saber.

José Augusto tremula, se põe a ir e vir convulsivamente no quarto; vai até a janela, torna à mesa a qual se agarra, volta-se e vai se colocar diante do amigo, cada vez mais encolerizado.

José Augusto- Serei eu por acaso um alucinado? Tu achas que eu não posso amar Fanny? Mas justamente, eu vou despertar nela um amor imenso; um amor que vou recusar, um amor excitado por minha própria severidade. (...) Ele estaca perto da mesa, e conclui diante da câmera: Engendrar um anjo na plenitude do martírio.

1. Quando estas frases terríveis são pronunciadas, estamos em Vilar do Paraíso, no quarto de Camilo, com este estrado azulado e esta secretária voltados para nós. Camilo escrevia e seu amigo José Augusto entrou pelo fundo do cenário. Estamos na trigésima sexta cena de Francisca, o último filme da trilogia consagrada por Manoel de Oliveira aos amores frustrados ( O Passado e o presente, Amor de perdição). Estamos no momento onde os personagens irão irremediavelmente comprometer seu destino, e Oliveira seu filme. A este programa frio (“Engendrar um anjo na plenitude do martírio"), Camilo só pode responder, perturbado: "Tu serás capaz? ".


Assistimos ao nascimento de uma paixão. Uma contagem regressiva começa com este desafio. Um desses desafios que se lança a seu melhor amigo, para pegá-lo de surpresa. Um desafio que só se lança a seu melhor amigo. Como se fosse preciso ser dois para amar uma mulher. Oliveira, mesmo que se trate do romantismo português, é um cineasta do romanesco. Ele sabe que se "um está sempre errado" e que "a verdade começa a dois", é preciso ser três para compartilhar um crime, para articular desejo e paixão.
Em Francisca, o desejo liga antes de tudo dois homens ( ele será recalcado) , e a paixão aprisiona um destes homens a uma mulher ( mas o movimento da paixão é infinito). Tudo separa os dois ( jovens) homens, e por isso mesmo sua fascinação é recíproca. O que pode ligar um jovem escritor pobre e um jovem aristocrata ocioso? O primeiro escreve para viver e se impor diante da nobre sociedade do Porto, sobre a qual já lança um olhar duro: ele a despreza ( mas a inveja), ela o despreza ( mas começa a reconhecê-lo, pois se trata de Camilo Castelo Branco, o futuro autor de Amor de perdição, já adaptado às telas por Oliveira.) O segundo, José Augusto, não possui desejo próprio: rico, não tem nada a ganhar, só pode perder. Camilo, de forma crua, lhe diz: "Tu amas por orgulho, tu amas o luxo de amar". Aos pobres o desejo, aos ricos a paixão. O desejo é produção, a paixão desperdício.


2. No começo desta paixão, há uma troca. Traduzamos: a rigor, José Augusto diz a seu amigo: esta mulher que não te ama ( subentendido: que não é para ti), mas cujo amor tu colocas em tão alta conta, eu vou me fazer amar por ela; mas não vou possuí-la; ela será infeliz, e desta forma eu vou te vingar. A ti por não tê-la possuído, a mim por só tê-la desejado através de ti. " Engendrar um anjo na plenitude do martírio" é uma fórmula abrupta, o programa mínimo que em nossas sociedades legitima toda aliança exclusivamente masculina. O recalque do desejo homossexual e o rebaixamento da mulher produzem a Mulher, ou seja, com frequência um anjo ( às vezes um anjo azul). Mas também imagens, stars, madonas como as que se produzem e se trocam tão facilmente entre os católicos ( ver sob a perspectiva de Buñuel).


Em seguida, há um acidente. A mulher não corresponde ao sinal. Há um erro de pessoa. Francisca, com seu ar doce, é tão cínica e amoral quanto José Augusto. Já de entrada, interrogada por Camilo, ela deixa escapar como que acidentalmente, e duas vezes: " A alma é um vício". Por seu turno, ao final da cena 36, José Augusto resume o assustador destino ao qual se vota: " Cinzas ao invés do desejo. A consciência ao invés da paixão". Determinação fria, sem objeto. O acidente é que José Augusto e Francisca são semelhantes, destinados a oscilar no mesmo sentido como pessoas postadas uma diante da outra, e cujas hesitações são sincrônicas. As armas de um podem ser usadas pelo outro, voltadas contra ele. Transforma-se sua infelicidade em prazer ( jouissance), sua renúncia em vitória: faz-se tudo para ter a última palavra. Assim, Francisca dispõe de uma arma secreta que lhe permite quebrar o duo romântico e restaurar o trio infernal: escreve ( a quem? pouco importa) que está sendo maltratada, desprezada, talvez espancada. Suas cartas acabam na mão deste outro escritor que é Camilo, que as remete a Augusto. O golpe é terrível: esta mulher que se deu a ler é pior do que se ela tivesse enganado seu ( futuro) marido. José Augusto, portanto, irá até o fim de seu roteiro: esposar esta mulher que ele seduziu e não tocá-la.


Enfim, há entre ambos um jogo combinado. Francisca reverteu o desafio de José Augusto no momento em que lhe gritou esta frase: "Tu me amas. Eu o juro". Frase espantosa. Para esta investida de um sobre o outro, a esta sequência de desafios, não há saída. Como no último filme de Truffaut ( A mulher do lado), mas sem os resquícios de fetichismo, a paixão é sem fim, inquebrantável. Só pode desaparecer com a desaparição dos corpos de que provém. E nem assim.


3. No desejo, o que é problemático, é que nunca sabemos exatamente o que o outro quer. É este não-saber que nos leva a desejar ainda mais. O que conta na paixão é o que o outro pode, aquilo de que ele/ela são capazes. Indiquei rapidamente ( mas o filme inteiro possui a concisão de um teorema) como Francisca partia dos estratagemas do desejo ( José Augusto deseja anular Camilo fazendo parecer que realiza seu desejo) para acabar do lado inevitável da paixão. Entre José Augusto e Francisca, um jogo infinito e sobretudo indeterminado, um "jogo sem qualidades", um "outro estado" , para falar como Musil. Pois no coração da paixão reside, como o seu motor vazio, uma fundamental incerteza. A incerteza não é o aleatório ( que foi a grande redescoberta do "cinema moderno"), nem também a ignorância ou a denegação ( de que os clássicos bem falaram). É ainda mais estranho.


Tomemos estes momentos onde certas frases do diálogo são repetidas. Tudo acontece como se o fato de uma frase ser pronunciada ( pelo ator) e em seguida ouvida ( pelo espectador) não lhe assegurasse uma existência certa. Como se fosse necessário arriscar através dos sons o que se ousou fazer antes com as imagens: o faux-raccord. Como se as palavras do diálogo fossem coisas de que fosse necessário demarcar o ponto de partida e um dos pontos de chegada. Desdobramento do diálogo. Jamais se levou tão longe a recusa do naturalismo e a necessidade de adotar em todas as coisas ( e as palavras são coisas) um ponto de vista, um ângulo.

Oliveira diz que só o interessa a representação. Ele o diz com tanto menor espírito de sistema quanto o fato de que em cinqüenta anos de cinema já experimentou de tudo: o documentário, a fábula naturalista, a comédia mundana, o cinema direto e a montagem. Em Francisca, liberto de toda necessidade de naturalismo, confrontado ao material integralmente artificial ( texto, cenário) que escolheu, ele projeta esta relação de incerteza por todo o filme. Ela não está apenas no coração da paixão que consome os personagens, mas no centro do que devemos chamar sem medo sua "estética". É necessário ter ainda menos medo na medida em que, em nossos dias, trata-se de algo cada vez mais raro.


4. Há em Oliveira ( como em Syberberg, Bene ou Ruiz, outros grandes barrocos) um esquecimento provisório de toda idéia de referente. Cada "figura" deve declinar sua identidade, mostrar seu modo de funcionamento, ser testada segundo sua duração, solidez, sua velocidade. Do que o outro é capaz? Mas também: do que tal ou tal figura representada é capaz? Personagens ou cenários, detalhes ou conjuntos, objetos ou corpos. Podemos ver Francisca como um filme muito engraçado ( como Méliès pode ser engraçado), sempre que uma figura "esquece" de se comportar segundo o código naturalista. Penso neste momento que nunca deixa de suscitar hilaridade , onde José Augusto entra a cavalo no quarto de Camilo. Um cavalo, ao invés de aportar seu freio nas margens do cenário, entra em cena e ainda por cima faz vacilar o espaço. Ou então é um personagem em primeiríssimo plano que, ao invés de pertencer à ação, se petrifica como uma cabeça de espectador incômodo, torna-se uma parte morta do quadro, uma zona de menos vitalidade na cena. Assim, José Augusto, ao fim de um jantar onde Camilo fora muito tagarela, e agora está cochilando no primeiro plano. Ou mesmo o primeiro plano do filme ( o baile). " Busco sempre recuperar uma linha que separa a máquina dos atores. Pois o trabalho para a máquina consiste em fixar o trabalho dos atores a partir da sala, da poltrona do espectador”, diz Oliveira. Enquanto ele não encontra esta linha, não se pode dizer o que está perto ou longe; o cavalo tem o direito de se aproximar e o dorminhoco se ausentar.

Oliveira é um imenso cenógrafo. Por não reduzir seu trabalho a “jogos de cena”. A escolha dos atores e dos rostos obedece a uma pesquisa ainda mais paradoxal que a de Bresson: ali onde este se interessa em eventuais “modelos”, Oliveira toma-os por paisagens. Os rostos, em Francisca, são montagens de objetos onde cada um obedece à sua própria lei e ignora os outros. Não é o caso em relação a Camilo ( dirão); mas é porque Camilo é um ser de desejo, e este desejo o torna “consistente”, idêntico a si mesmo, em todas as cenas. Em revanche, José Augusto e Francisca, seres de paixão e decompostos pela paixão, são submetidos a uma vertiginosa anamorfose.


5. Hoje em dia a velocidade- a dromoscopia- é uma questão muito importante. Questionamo-nos como se pôde falar tanto tempo dos filmes sem se interrogar sobre as velocidades comparadas dos corpos que estes põem em movimento. “ O cinema, diz ainda Oliveira, é o que colocamos diante da câmera”. Mas para fixar o que? As velocidades de composição e de decomposição, de evaporação ou de sedimentação. No mundo de Oliveira, o desejo compõe e a paixão decompõe: um olho pode ir mais o menos rápido que um olhar, uma boca e o que esta diz, Francisca tem uma maneira de “virar a cabeça” e José Augusto de “revirar os olhos” que é necessário analisar não apenas em termos de tipologia sociológica ( decadência da aristocracia), mas remeter à questão materialista por excelência: o que pode um corpo?


Dois dedos pousados sobre uma mesa, um chapéu jogado ao longe, domésticos ( sempre muito rápidos), cavaleiros lentos, cartas, amores possuem velocidades diferentes. Em Francisca, é muito raro que dois personagens sejam afetados por uma mesma velocidade. Ao contrário. Se abandonam uns aos outros muito rapidamente, se dizem precipitadamente uns aos outros coisas tão graves, se a narrativa do filme é lacunar a este ponto, é porque estão todos em órbita, como astros ou elétrons. Apenas se encontram em momentos precisos, calculáveis, é certo, mas com uma certa margem de incerteza, como dizia Heisenberg dos átomos. Átomos. A grande palavra foi jogada. Não vejo outro cineasta ( com exceção de Biette e seu “teatro das matérias”) que esteja próximo a este ponto do materialismo antigo. A força de Oliveira está em tratar arquétipos-tipos da religião ( “engendrar um anjo na plenitude do martírio”) com a ausência de pathos e a acuidade distanciada de um filósofo pagão. A paixão afeta os corpos por inteiro, e cada uma das partes destes corpos por inteiro, e cada uma das partes das partes por inteiro, etc Por inteiro e diferentemente. Não há fim para a incerteza ardente da paixão, sobretudo a morte não é um fim.


6. A mais bela cena do filme se situa perto do final. Francisca está morta, José Augusto a fez autopsiar, guardou seu coração num bocal e este bocal numa capela. O órgão vermelho apavora a empregada. Não se trata aí de um vão fetiche. A este coração-músculo, a este coração inteiramente material se coloca sempre a mesma questão: de que ele é capaz? O que pode este objeto encarquilhado? A resposta nos é dada pelo próprio José Augusto: “ Vivemos estilhaçados, em busca de nossos corpos dispersos por toda a terra. O ventre, que deseja esquecer o pecado, hurla; o fígado, que deseja se agarrar ao lado direito, geme; e o coração em mil pedaços penetra nas ruelas mais miseráveis, em busca do sangue que o vai formar”.


O que pode o cinema? Um velho homem, um dos grandes cineastas vivos, dá sua resposta. Ele nos diz talvez que o cinema é como este corpo. É preciso que ele se recomponha, órgão por órgão. Abaixo o story-board, abaixo o museu. Viva o cinema.”


Serge Daney, “ O que pode um coração?”, Cahiers du Cinéma número 330, dezembro de 1981.


Tradução: Luiz Soares Júnior.