terça-feira, 17 de novembro de 2009

Um americano tranquilo, Mankiewicz

O filme mais estranho e mais desconcertante de Mankiewicz, apaixonante como um romance de enigmas. Mas este romance não contém, falando propriamente, um enigma: ele próprio é integralmente um enigma. O domínio da construção não surpreende os espectadores familiares ao estilo de Mankiewicz. Como na Condessa dos pés descalços, uma substância romanesca extremamente rica ( em espessura, em perspectivas) é segmentada em longas cenas teatrais com diálogo abundante, inseridas em um flash-back. Aqui, à diferença da Condessa, há apenas um flash-back e um único narrador, que nos conduz com ele em seus devaneios impotentes perante a realidade, sua confusão, sua perplexidade, sua má consciência, em sua culpabilidade e hipocrisia, em suas mentiras pueris, sempre rapidamente desmascaradas. Sua narrativa possui a textura de um “pesadelo desperto” ( segundo a expressão de N.T. Binh, em seu primeiro livro publicado em francês sobre Mankiewicz, Rivages, 1986) e se encaminha inelutavelmente para um desenlace trágico que nada nem ninguém poderia impedir. Este movimento para a tragédia é o único elemento claro no filme. Quanto ao resto, Um americano tranqüilo é o filme do mal-estar, da incerteza, do porte-à-faux 1. Um destino vacilante priva os personagens ( e sobretudo o narrador) de sua lucidez, ou a torna derrisoriamente inoperante. Mesmo o importante papel atribuído aos diálogos acaba por ser negativo. Quanto mais os grandes personagens falam, menos compreendem o mundo, a história e a eles mesmos. Mankiewicz joga habilmente com as diferentes línguas faladas pelos personagens, afim de intensificar, sempre com ironia, sua confusão. A intriga mescla um aspecto sentimental e psicológico a um aspecto político, mesclar querendo dizer aqui misturar, confundir, obscurecer. Longe de mutuamente se valorizarem, estes aspectos se aniquilam, e este filme sem mensagem política coerente apresenta uma das heroínas femininas mais ternas da obra de Mankiewicz. Este vivia, na época da filmagem, um dos períodos mais tormentosos de sua vida. ( O estado mental de sua mulher, a atriz Rosa Stradner, se degradava cada vez mais, e ela iria se suicidar no ano seguinte, em 1958).

Mankiewicz explicou que seu interesse pelo romance de Graham Greene vinha sobretudo do personagem de Fowler: “Eu sempre quis fazer um filme sobre esses intelectuais glaciais cujo intelectualismo é apenas uma máscara que recobre reações totalmente irracionais” ( citado no livro de Kenneth Geist sobre Mankiewicz, “People Will talk”). A mensagem do filme consistiria assim em mostrar , em um ser aparentemente evoluído e senhor de si, o triunfo desconcertante do irracional e do emocional sobre a razão e a lucidez. Triunfo feito na medida para justificar esta cólera, esta amargura misantrópica que Mankiewicz ressente, de forma intermitente, em relação à humanidade, e sem dúvida, em primeiro lugar, em relação a si mesmo. Pois, em suas trevas e sua ambigüidade, Um americano bem tranqüilo permanece, no interior da carreira de Mankiewicz, uma obra extremamente pessoal e até mesmo íntima.



1. Em uma situação ou posição perigosa, instável, desequilibrada.
Jacques Lourcelles.
Tradução: Luiz Soares Júnior.



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