terça-feira, 29 de setembro de 2009

Ponto de vista. Por Serge Daney

2 de Dezembro 1989 – Velho princípio da “nossa” cinefilia: o ponto de vista. Para mim, o ponto de vista é precisamente o que vem no lugar de um corpo que é elidido na imagem, o que pode ser visto do ponto cego. O ponto de vista refere-se ao que pode ser visto por um personagem que estaria sempre no lugar da câmera. Persistir com esse ponto de vista diretamente significa confrontar problemas de mise en scène (desde que haja imagens proibidas, o que não seria consistente com o ponto de vista único). A questão do “ponto de vista” vem para perguntar quem está olhando. Quem é o personagem adicional? Por exemplo, no filme de Depardon, outro guarda, o guarda “que saberia”. O cinema do ponto de vista único está desaparecendo/ausentando-se (em ambos sentidos do termo) em sua (mística, pictória) relação com o “real”. Ele abole a si mesmo. Ele nunca teve muito sucesso, visto que confisca para si mesmo o imaginário (e priva a audiência disto: Antonioni, Depardon). Obsessivo.
O cinema do ponto de vista duplo é o cinema popular por excelência, visto que este acampa firmemente entre o plano e o contraplano (leia o livro de Warren), bancando o “pequeno objeto a” ( petit objet a) entre dois objetos capturados numa luta de forças (veja minha velha idéia sobre Tubarão: o tubarão e a perna da criança). É popular porque cria uma identificação vertiginosa entre dois pólos: ativo/passivo, caçador/caça, torturador/vítima, etc. Histeria.
Isto deixa o cinema com n pontos de vista; no fim, é isso o mais importante. Algumas vezes é popular, mas não necessariamente. Ele tem que brincar/fazer malabarismo com a paranóia, a lei, a loucura. Não consigo imaginar um filme melhor que The Night of the Hunter nessa categoria, a categoria da polifonia, do carnaval (talvez junto com Ivan o Terrível, 2001, alguns filmes de Ford).
Tiebreak (set de desempate): o cinema sem nenhum ponto de vista é possível? Não. Nós teríamos que analisar televisão não com metáforas visuais mas táteis (“ponto de toque”, acolchoamento tátil) e proxêmica1.
23 Julho 1988 – DEMY (tv). O fim de Duas Garotas Românticas. Estúpido, devastado, emoção definitiva. Uma emoção tão forte que tudo que eu sempre pensei – e escrevi – sobre Demy continua verdadeiro. Um cineasta difícil, não completamente sentimental, mórbido e alegre.
Só uma “idéia”. Melancolia não é nostalgia. O mundo de Demy (o meu também, suponho) é melancolia instantânea. Não há mundo perdido, nenhum ideal que se foi, nenhum estado prévio pelo qual nos lamentamos. Pela simples razão (perversion oblige 2) que não queremos saber nada desse mundo “do qual viemos” (mais aliança do que parentesco, etc). Melancolia é instantânea como uma sombra. Coisas se tornam melancólicas imediatamente, graças à música e à música do diálogo. É a boa disposição ( good mood) com a qual os personagens falham em tudo (exceto talvez no essencial) que é terrível e comovente ao mesmo tempo. Um não falha nas coisas porque não as vê mas porque ele descobriu muito rapidamente um jeito de esvaziá-las do seu conteúdo, de circular ao redor delas, de dançar. Darrieux descobre quem é o sádico e diz: “E ele comandava tudo enquanto cortava o bolo!”
O essencial era o amor mas este seguiu perdendo suas cores. Já nesse filme a beleza do “último minuto” porque todo final feliz é puro voluntarismo. Porém, mais tarde (Pele de Asno, etc) este se atrita mais e mais. E voluntarismo é precisamente o assunto de Une chambre en ville.
A força absoluta de Demy é relacionar tudo de um ponto de vista perfeito: o da mãe. A mãe que nunca cresceu, que é frívola, que esqueceu de parar de ser uma garotinha. O mundo é organizado a partir desse ofício cego.
A dançar: Gene Kelly.
26 Março 1988 – Ontem, entre a tarde e a noite, em frente à TV. Abandono rapidamente 8 ½, mesmo que nunca o tenha visto, mas me exaspera e me pego assistindo até o fim um filme que objetivamente acho mal feito, mal contado, mal tudo: O Veredicto de Sidney Lumet. Esquizofrenia da televisão: nós não só assistimos o que não é bom (não é bem feito), mas nós vemos até melhor do que no cinema (edição, por exemplo), e mesmo assim nós preferimos ver um filme mal feito do que um bem feito. Ou ainda: os conceitos de “bem feito” e “mal feito” não são relevantes na televisão. Ou o filme tem uma força tamanha que se impõe ou nós estamos na relatividade de um mundo de imagens, numa banheira do imaginário, onde tudo é interessante. Isso depende do clima do momento. Ontem eu preferi assistir Mason e especialmente Newman compondo com idade, com tudo. Lumet é o arquetípico cineasta que filma do ponto de vista de ninguém, portanto com uma eficiência abstrata, tão abstrata que é reduzida ao nonsense de roteiro. Ele acelera quando não há razão pra isso. Um belo momento. Newman finalmente encontrou a enfermeira que “sabe” o que aconteceu. Ela cuida de crianças em Chelsea. Ela tem uma bela face de santa de sindicato. Ela está no playground; Newman, que chegou de Boston, está abordando-a desajeitadamente. Close-up no bilhete Boston-Nova Iorque, que cai de seu bolso. E lá, um pequeno truque do velho Lumet, um pouco da verdadeira velocidade: contracampo em Newman que não está mais aparecendo: "Você vai me ajudar?" Ela vai ajudá-lo, não porque o roteiro exige isso, mas porque nós fomos colocados no lugar dela (pela mise en scène) e ela no nosso, e porque o desejo de que ela o ajude foi inscrito no filme. Coisas velhas mas existentes, pelo amor de Deus!
O exemplo do filme de Lumet, uns dias atrás (“Você vai me ajudar?”) soma tudo isso. É impuro ( ou pouco refinado) mas suficiente. O plano de Newman – de um Newman que pede ajuda e pede duas vezes: para o outro personagem (off) e a mim que – por um instante – fui capaz de me colocar no filme no lugar desse personagem ausente da imagem. E ele será ajudado duas vezes: no roteiro e por mim (neste momento, eu aceito seguir com o filme, e então fazê-lo funcionar).
Notas:
1.O termo proxêmico foi cunhado pelo antropologista Edward T. Hall em 1966. Consiste no estudo de distâncias mensuráveis entre as pessoas à medida em que interagem. “Como a gravidade, a influência recíproca entre dois corpos é inversamente proporcional, não apenas ao quadrado de sua distância mas até possivelmente ao cubo da mesma”.
2.Paráfrase da expressão clássica em francês Noblesse oblige ( Nobreza exige, ou obriga), referindo-se a regras fundamentais e imprescindíveis de etiqueta. No caso, de perversão.
Traduzido do livro L'exercise a eté profitable, monsieur. Tradução original do francês para o inglês por Laurent Kretzschmar.
Traduzido do inglês para o português por Luan Gonsales.
Revisão e notas: Luiz Soares Júnior.

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