segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Moonfleet e Rio Bravo

Moonfleet 1:
"O pai é aquele que não responde às questões que não lhe são colocadas. Isso muda o que? Tudo. O pequeno Mohune, criança apagada, criança efeminada, criança aventureira, sonha ser um cavaleiro branco, como um Ballantree de opereta. Tu achas que ele vai questionar seu querido Stewart Granger? Stewart Granger é um verdadeiro herói underground. Não estamos em Warhol ou Kenneth Anger. Não estamos nas bichas. Faça-se uma idéia das telas pintadas e das canções de Luis Mariano, que tramam em suas profundezas o universo de Moonfleet. Eu sei que o cinéfilo de Moonfleet tem os cabelos verdes, os cabelos de cor indefinida. Não estamos em Losey, 1948. Estamos em 1955, onde tudo começa ( Hitchcock apresenta), antes que tudo fosse acabar, meses mais tarde, com o desastre Presley, a gangsterização Sinatra, e em breve John Wayne como travecão pós-cinema em Rio Bravo. Em Moonfleet, o pequeno Mohune é oferecido em holocausto, sim ou não? Não. A Criança sacrificada é aquela de Bigger than life ( Nichjolas Ray, 1959). Ok, mas o pai de Moonfleet é um cafajeste, não? Stewart Granger? O que te leva crer que ele é o pai? A criança ama seu pai, não? Não. (...)... exatamente, foi Lang sim quem filmou os embates amorosos de um jovem rapaz com trejeitos de moça ( Jon Whitley) e de um pai substituto, charmoso demais para ser honesto ( Stewart Granger). Vão te dizer: mas não é verdade!, Mooonfleet é apenas um filme de aventuras à la Louis Stevenson, um Maitre de Balantree languiano. Não é falso, mas também não é o mais importante... "
Moonfleet 2: "Este filme não é apenas uma etapa no país da cinefilia. É mais que isso, muito mais. É de onde se parte para nunca mais voltar. Aquele que não retorna permanece em estado de exílio, em estado de infância, de maravilhamento. Aquele que retorna não é mais o mesmo. Ele viu demais para coincidir novamente com o que um dia foi. Ele descasca pouco a pouco de si mesmo, e os transeuntes casuais encontram pedaços dele dispersos pelo vento, fragmentos de pele do cinéfilo, que vem planar sobre a lua, como tantas juras de amor perdidas. Trata-se de dizer aqui, com as pobres palavras de que dispomos, do que o cinema é feito, e do que o cinema se desfaz. Ele se desfaz como pode, o coitado do cinema. Em 1955, já estava fodido. Explodido, quebrado, em estilhaços. Não é por acaso que neste mesmo ano Hitchcock vai para a tv, com suas indestrutíveis miniaturas em preto e branco. O minimalismo televisivo hitchcockiano carrega tudo à sua volta, até mesmo o suntuoso Cinemascope que Fritz Lang inventa para Moonfleet.O que ele dizia do Scope, Lang? Esqueceram, é, gracinhas? “O cinemascope é bom pra filmar serpentes e enterros.” Lang sabia que Moonfleet enterrava Moonfleet. Ele sabia que esta lição de cinema era uma lição perdida. Ele sabia que o exercício só era útil1 para aquele que o quisesse esquecer. Pois é, é isso. Esquecer a lição, a dor, esquecer o cinema. E basta. "
Moonfleet 3: "Moonfleet de novo? de novo. Sim, de novo. Em nome do cinema do presente? Sim, o cinema no presente. Sim. De novo. E de novo novamente. Rio Bravo também? Claro. E por que? Porque é Rio Bravo que estrutura Moonfleet. Mas como Rio Bravo, que saiu em 1959 pode estruturar Moonfleet, que vimos em 1955? Você não vai me dizer que se trata de pós-crítica, pós-cinema, vai? É pior ainda. O cinema começa pelo fim. O fim, que fim? O fim, é tudo. Devemos olhar para trás, não? Sim. É o travestismo terminal de Rio Bravo que nos ilumina o travestismo precoce de Moonfleet. Perucas e minstrel shows, é isso, né? É, é isso...

“Rio Bravo ajuda a entender que Moonfleet está no centro de Moonfleet. A iniciação, o terror, o sadismo. O sadismo está no centro de Moonfleet como um travesti emperucado e maquiado. Ah, é? Claro. Stewart Granger é Daney, né? Não, é o contrário; é Daney quem interpreta 2 Stewart Granger. E a criança? A criança é Louis. Louis? Sim, a criança é Louis, é sempre Louis. Sim. Ao fim da linha? Sob o rolo compressor? Sim. E Moonfleet? Moonfleet é o rolo compressor. Tem certeza disso? Ah, sim, claro... (...) Tanto em Rio Bravo quanto em Moonfleet, trata-se de iniciação. A iniciação, do que se trata? Aprender. Aprender o que? Aprender a aprender. Tá bom, então? Que esteja bem, nada a ver. E o que é que temos de ver, então? Que é a mesma coisa. Que mesma coisa é essa, então? Uma lição de cinefilia, uma lição de Rio Bravo. O que é uma lição de Rio Bravo? Moonfleet. Como Moonfleet ( 1955) pode ser uma lição de Rio Bravo ( 1959)? É assim, oras! Como “é assim, oras!”? Como o último Skorecki, Cinéphiles 3 ( Les ruses de Fréderic). É seu último filme? É. É uma lição de Rio Bravo? Sim. Só existem lições dadas por Rio Bravo. Não se trata de data ou de conteúdo. Ah, é? É, é a lição para a criança. O terror? É. O sadismo? É, pois é. (...)”
Rio Bravo 1:

“Falava-se outro dia do filme horroroso de George Cukor, Sylvia Scarlett. Falava-se também de Jane Bowles3 e de travestismo. O travestismo último, no cinema, está em Rio Bravo. Eu já disse isso cem vezes, direi mil mais, até que um ou dois leitores entendam. Que dois leitores entendam, já basta, estou no caminho certo, menos só. Se sentir menos solitário, para um homem do frio como eu, isso esquenta o coração. É de fora que eu vejo essa coisa. É de fora do cinema que eu vejo o fantasma do cinema. Por que “fantasma”? Porque sim. Porque em 1958, ( se estamos falando da filmagem), ou 1959 ( se estamos falando da data do lançamento), Rio Bravo já era o espectro do que tinha sido o espectro de uma arte usina defunta, um western travesti onde Jane Bowles, a queridinha de Tennesseee Wiliams e de Truman Capote, não teria do que se envergonhar.
Se o roteiro de Sylvia Scarlett tivesse sido escrito por Jane Bowles, o único travesti literário do século passado4, Sylvia Scarlett teria sido uma obra-prima. Teríamos visto Katherine Hepburn, adorável rapaz travestido, sucumbir ao sex appeal do crocante Cary Grant, e lhe passar a língua sobre a covinha do queixo. Ela o barbearia com a língua, destramente, assim como Angie Dickinson barbeia Dean Martin em uma bela cena cortada de Rio Bravo. Sylvia Scarlett é um dos piores filmes do mundo, e dos mais charmosos também. “Quando eu te vejo, diz o homem ao travesti Katherine Hepburn, eu me sinto um pouco estranho, um pouco queer”. O filme é belíssimo, mas Rio Bravo vale cem mil Sylvia Scarletts, mesmo se chega pelo menos vinte anos tarde demais. 1934-1959: meçam a distância vertiginosa entre estes dois filmes travestis. Mas o que chega muito cedo ( Sylvia Scarlett) está longe de dar tão certo quanto o que chega tarde demais , ou seja, aquele que vem em seu tempo certo, este Rio Bravo idealmente sincronizado com seu tempo, com o tempo do pós-cinema travesti.( Libération, 8 de maio 2006).”

Rio Bravo 2: “(...) Eu me chamo Fréderic, Rio Bravo é teu filme preferido, repita comigo. É a última fronteira, o western em frangalhos que se autoparodia, o filme de gênero que recapitula todos os outros, a linha vermelha além da qual o teu ingresso não vale mais nada. Depois de 59, depois de Rio Bravo, o cinema decide viver no dia a dia, à luz do dia. O cinema “ de dia”, caso não saibam, é a televisão. Muita água rolou desde então, o cinema hoje é a tele-realidade. Vocês não concordam comigo, tou pouco me lixando. Vocês pensam que as séries televisivas, 24 horas, Nick/tup, Oz, Les Soprano, tomaram o lugar do cinema. Vocês estão atrasados em pelo menos vinte anos, estes anos capitais do pós pós-cinema onde ocorreu justamente o contrário: foram os filmes de cinema que se puseram a pastichar à toda a televisão, as séries de televisão em todo caso. Rio Bravo só existe hoje como minstrel movie, um filme que se esgota no travestismo de seu roteiro e de seus atores. Os minstrel show do século 19 permitiam a um público branco ver os negros sem se assustar além da medida, precisamente na medida em que brancos maquiados de forma ultrajante os interpretavam, só conservando dos corpos negros os excessos, o grotesco e o patético, como mais tarde os travestis farão com os corpos das mulheres. Vocês vão me dizer: qual a ligação com John Wayne, Angie Dickinson, Ricky Nelson? Ora, não ver na peruca de John Wayne, em seu corpo volumoso, em seu ar de mocinha assustada com uma mulher grande demais, ou vestida com colantes cor-de-rosa demais ( ou seja: os atributos da drag queen); não ver que Angie Dickinson e Ricky Nelson são ainda mais explicitamente travestis e maquiados que ele, não ver isso é recusar o cinema, o cinema à luz do dia. Mas afinal de contas, por que não, não é? ( Fréderic Beigbeder em Les Cinéphiles: Les ruses de Fréderic, 2006).”

Notas:


1. Il savait que l'exercice n'était profitable: referência a um livro de Serge daney sobre tênis, L’exercise a eté profitable, Monsieur.

2. em francês no original: C'est le contraire, c'est Daney qui joue à Stewart Granger. Este verbo “jouer” é bem ambíguo, e tem a acepção tanto de interpretar um papel quanto de brincar, jogar ou encenar. Ambigüidade esta essencial à retórica de Skorecki, gênio do paradoxo e dos jogos semânticos de sentido.

3. Jane bowles ( 1917- 1973) escritora norte-americana bissexual, mulher de Paul Bowles. Autora de um único romance, Two serious ladies e de uma peça de teatro, In the summer house, era idolatrada por Tennessee Williams, John Ashbery e Capote como uma das grandes escritoras de seu tempo.

4. O século passado a que Skorecki se refere é, naturalmente, o século 20.

Louis Skorecki.

Tradução: Luiz Soares Júnior.


Nenhum comentário:

Postar um comentário