quarta-feira, 3 de junho de 2009

Era uma vez no Oeste, por Serge Daney

Era uma vez no Oeste marca o apogeu ( e talvez o colapso) de uma série de filmes assinados por Sergio Leone cujo interesse é a priori imenso: eles constituem a primeira tentativa , embora pouco conseqüente, de cinema crítico, ou seja, não mais em confronto direto com a realidade (mesmo que às vezes o recurso à verdade histórica- que Leone conhece bem- tenha um valor estratégico), mas com um gênero, uma tradição cinematográfica, um texto global, o único que conheceu uma difusão mundial: o western. Não é pouca coisa.

Como um cinema crítico é possível? Desde muito tempo, os Americanos renunciaram ao western racista e beato ( DeMille); daí,a partir dos anos 50, um jorro de filmes humanitários ( Daves) ou crepusculares ( Ford, Peckinpah). Senso crítico, mas não cinema crítico. Este só poderia se elaborar “de fora”. Mas de onde, de que “fora”? De um dos raros países que possuía também um cinema de série, paralelo, tradicional e popular: a Itália. Ou, mais exatamente, Cinecittá no momento preciso em que o péplum corre perigo, minado por paródias ( já Sergio Leone aí). Ora, o essencial está aí: não que alguma demiurgia tenha decidido um dia fazer cinema crítico, subversivo e vagamente político, mas que este cinema seja antes de tudo ( ou em última análise) o único produto de uma evolução econômica. Trata-se apenas para Cinecittá de re-investir homens, cenários, figurantes e capitais em um novo gênero de filmes. Trata-se de “amortizar” ( reconstituição do capital empregado em uma compra). Estas origens vis e baixamente comerciais fazem ( farão/fariam/poderiam ter feito: o futuro nos dirá) a grandeza do western italiano. Por duas razões (ao menos):
1). Porque de que até então havia razões ruins para amar os filmes B, e é conveniente modificá-los. Admitamos que em alguns países onde o cinema constitui uma indústria robusta , o cinema B delimita uma espécie de lumpen-cinema ( cinema do lupemproletariado1), bom de qualquer modo pra fazer a máquina girar, amado de forma esnobe e contraditória ( em uma espécie de cinefilia “operária”) não podendo aspirar à qualidade, nem mesmo à consciência clara dos elementos ( temas, situações) que ele ilustra porque esta (a consciência) é reservada aos filmes de qualidade: digamos, mais pra Zinnemann que para Dwan.
2). Admitamos hoje que na Itália alguma coisa que Hollywood não podia realizar era possível: a tomada de consciência deste lumpen-cinema, efetuando, sob a máscara das velhas formas ( portanto, sem negar seu caráter popular), um eufórico trabalho de desconstrução. “Uma força não sobrevive se em primeiro lugar se ela não toma de empréstimo a máscara das forças precedentes, contra as quais ela luta” ( Nietzsche).
Este trabalho pode ser bem realizado sob uma condição: que o western italiano conserve seu caráter de massa. Não se trata mais, sucumbindo à obsessão utilitária, de desmistificar em um único filme toda uma tradição, todo um conjunto de convenções e reflexos. Os resultados práticos de semelhante operação foram nulos, mesmo se os filmes belos ( Tourneur). Isto quer dizer que o western italiano deve ser produzido em massa e para as massas. E isto apesar do grande obstáculo: a recuperação pelo cinema de qualidade ( a arte e o ensaio, a burguesia) de individualidades excessivamente videntes, o que é o caso, hoje em dia, de Sergio Leone.
Quanto aos meios deste trabalho, começam a ser conhecidos ( mas admitamos que só foram seriamente utilizados nos filmes de Leone e do misterioso Sollima). Constituem ora a mostrar o que o western clássico ocultava, ora a exagerar o este mostrava. A força dos filmes de Leone está em extenuar a retórica habitual do western, em fazer da surenchére (supra-oferta) o equivalente de uma negação. Em relação a isso, seria interessante mostrar como ao western convencional, construído sobre o morceau de bravoure ( High noon, The tin star) Leone opõe uma seqüência ininterrupta de tempos fortes que se anulam reciprocamente: ao máximo de intensidade corresponde um mínimo de sentido. Interessante de ver também como este cinema se dá a escolha dos meios (chamada também de gratuidade por toda uma tropa de bem-pensantes que é preciso obrigar urgentemente a ler os textos decisivos de J.J. Goux), como da beleza ( dos atores, e paisagens), da justeza de tal ou tal estilo de narração ( elipse ou tempos longos) ele faz um uso estratégico a tal ou tal momento. ( Isto no caso de Sollima e do magnífico Colorado). Etc. Quanto a Leone, de quem pouco se tratou aqui, é igualmente possível empreender desde hoje a decifração de uma obra já pletórica (superabundante, com muitos elementos) em tiques e “tropes” ( retórica, artigo decorativo).


Serge Daney.

Nota 1. Na terminologia marxista, parte do proletariado constituída por aqueles que não dispõem de recursos e caracterizados pela ausência de consciência de classe.
Tradução: Luiz Soares Júnior.

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