quarta-feira, 15 de abril de 2009

La dé-faite. Sobre Hurry Sundown, de Otto Preminger

1. Para alguns, os grandes filmes de Preminger são sobre a criação. Não deixam de ter razão. Mas seria mais legítimo falarmos na impossibilidade de toda criação. Desta impossibilidade nos vieram algumas obras-primas, depois alguns filmes tocados pela loucura, e hoje a amarga insignificância de Hurry Sundown. Preminger falava da criação, mas de uma criação estranha, pouco satisfatória, pouco natural, espantosa apenas pela soma das energias postas em jogo. Não o élan ( impulso, dinamismo) que proporciona a tudo e a todos seu lugar no mundo, a chama indivisa que impulsiona para frente, sem remorsos, e que a análise não consegue atingir. Preminger não é homem desta criação, embora ela tenha sido sua grande preocupação: a esperança, o assombro de suscitar, de descrever uma criação inocente. Nos filmes que lhe valeram sua reputação ( Fallen angel, Laura, Whirlpool), esta inocência é aquela do inseto que se enrosca na teia, que ignora que jamais esteve tão próximo da aranha, inocente pois hipnotizado, preso na armadilha, fantoche, cego fantasma criador, criador porque cego.

2. Filmar é tornar o incompatível evidente. Esta é a lei que corrói o cinema de Preminger, a exigência sobre a qual este cinema é construído, brilha em todo o seu esplendor e se consome em pura perda. Filmar dois personagens é sublinhar sua diferença, torná-la insustentável. Então, é o espaço que os aproxima- que os separa- que é o objeto do filme ( e da famosa “mise em scéne”), um espaço que uma soberana ironia ( o poder de distinguir) mantém ( Anatomia de um crime), isso quando uma sensualidade progressivamente devoradora não o fratura sem fim ( Bom dia tristeza).

Pressionados pelo roteiro, pelas exigências de uma “história”, a compartilhar o mesmo espaço, os homens se roçam , e retém deste contato- dado, retomado- a certeza de sua maldição como o maior dos prazeres , prazer perverso e sem recompensa, desvario da proximidade, até que o olhar se turve ( brouille), que uma raiva fria, uma sensualidade já decadente se desencadeiem- em vão. “Mise em présence”, inquietantes e como se fossem contra natura, relações sem liga e sem “ligadura”, porta aberta a todas as violações por frigidez, orgias por impotência. O homem é diferente. Às vezes filmar reconcilia: em Renoir, Ford, as diferenças, uma vez filmadas, não mais diferem: o espaço que elas repartem torna-se sua terra de acolhimento, o primeiro de seus pontos em comum. Preminger é dotado do talento contrário: os que passam diante da câmera já se distanciam uns dos outros, votados à dispersão que é sua lei, ou a uma junção desajeitada e imperfeita, que os restituirá mais seguramente à condição de fragmentos.


3. A arte da mise em scéne não era- como se acreditou, de forma leviana- panacéia universal ou meio privilegiado de fazer cinema. O exercício da mise em scéne é também a expressão de uma falta, uma carência ( un manque): suscitar em torno dos personagens, encerrados em sua solidão, vítimas de suas diferenças, um espaço que fosse sua prisão comum: arquitetura dos vazios, onde o vazio ameaça. A “fascinação” exercida pelos filmes de Preminger é o efeito desta distância que procuramos reduzir o máximo possível, até se confundirem olhar e coisa olhada. Mas esta confusão- que seria a proximidade máxima- está fora de questão ( a não ser, como aparecerá mais adiante, na morte, na destruição,o Apocalipse). Mas esta confusão- esta coesão- é também o papel do artista: a abolição feliz das diferenças, a comunicação restabelecida, o corpo-a-corpo assumido. Quando filma Exodus, Preminger se situa no coração de sua criação: a vitória da coesão sobre o fragmentário. É preciso levar a sério a cena de Exodus onde vemos Ari bem Canaan pronunciar a oração fúnebre de Karen e de Taha, personagens que tudo separava e que uma mesma terra, um mesmo túmulo vão acolher: o plano dos dois caixões, de talhe tão diferente ( diferença insustentável e que, verdadeiramente, “salta aos olhos”) contém, para Preminger, o mais pesado dos sentidos.


4. A arte da mise em scéne consiste portanto em articular este vazio que desliza fatalmente entre dois seres, entre dois momentos de um filme. Ela é o cimento de um edifício onde nenhuma pedra se assemelha à outra, e sua importância vem do fato de que ela- e unicamente ela- garante a solidez do edifício. Se este poder, esta “ligadura” ( chamado também de savoir-faire, ou habilidade) vier a faltar, a obra inteira será votada ao reino do fragmentário e do detalhe ( Hurry Sundown). A partir de 1960, Preminger é este homem que só buscará a fusão, a coesão na morte ou na aniquilação. Seguem-se terríveis excessos de “estranhamento”: uma vez que os homens são fragmentos, suscetíveis apenas de serem justapostos, é preciso reconstruir o mundo pacientemente, mas reconstituir o mundo inteiro, a partir destes pedaços. Paradoxo que poderíamos enunciar da seguinte maneira: descrever uma multidão onde poderíamos, a todo momento, chamar cada um por seu nome.


5. Decisão que não se assume sem consequências. Que um homem seja algo de fragmentário, pouco suscetível de um encontro harmonioso, mas destinado à tensão raivosa da proximidade, capaz unicamente de violar ou se dispersar, é isto que constitui o fundo das coisas. O resto, isto é, o desvio que tomou a obra de Preminger estes últimos anos, é apenas uma tentativa de justificar esta verdade, dando-lhe palcos plausíveis. Assim, temos os “grandes temas”: o episódico, o inacabado não possuem nada de assustador, se são garantidos pela amplidão e pelo mistério de um grande tema, onde a fragmentação é justamente a lei, a única maneira de descrever. Ninguém está em possessão do jogo completo das causas e dos efeitos, mesma nas altas esferas da política ( Advise and Consent), da Igreja ( The Cardinal), ou do Exército ( In Arm’s Way). A vista sobranceira, à medida em que se distancia de seu objeto, conforta: uma multidão onde só encontramos rostos conhecidos.


6. Outra consequência: os filmes sofrem- em sua própria estrutura- uma evolução análoga. Cada cena não precisa mais ter relação com o todo, a não ser de forma bastante distanciada, à maneira de um “relais”. O filme como conjunto de elementos, soma de energias, está também ameaçado de dispersão, sequência de elos ( maillons) que ignoram o destino da cadeia- se cadeia houver. Em In Harm’s way, vemos uma meia dezena de dramas e de problemas pessoais que parecem ter suscitado Pearl Harbour. É bem evidente que no espírito de Preminger o cálculo foi inverso: tratar-se-ia de encontrar um tema grandioso o suficiente para justificar a violência gratuita destes dramas, sua impossível resolução, seu encadeamento arbitrário. Assim, na medida em que o fragmentário acentua seu domínio, exige um cadre mais geral, um horizonte mais universal.


7. Dir-se-ia que é um cálculo desonesto. Certo, Preminger pôde dar- pôde se dar- a ilusão de tratar de alguns grandes temas, mas esta ilusão não se sustenta mais, os pretextos cessaram de ser plausíveis.Assim, o problema racial nem explica nem é mais explicado por Hurry Sundown, mas é um palco convencionalmente explosivo onde pode se posicionar esta outra violência, a de um casal que se precipita em direção ao seu desastre- défaite- ( “défaite” como se diz de uma coisa que ela se desfaz - défait). Se o filme choca, é porque não é mais possível- em 1967- falar dos Negros como Preminger o faz, e se este trata mal deste tema, é porque o problema para ele é apenas um caso particular da regra; a regra que é, sabemos bem, a recusa de uns de se entregarem aos outros, a fim de se conservarem na consciência infeliz de sua diferença.


8. Há também outra coisa. In Harm’s way era um filme admiravelmente realizado. A arte do cineasta, a rapidez da execução, a escolha de certos atores, a mise em scéne no ponto de clímax dos seus poderes conferiam ao filme esta “liga” que o preservava, in extremis, da dispersão. In Harm’s way era a soma falsa de elementos justos. Não é o caso neste Hurry Sundown. O mal que roía os personagens acabou por corroer o próprio filme. A dispersão, a entropia, a falta de sinceridade despontam em cada plano. À ruína moral dos personagens corresponde aqui o retorno do filme ao caos, ao reino do detalhe, às imagens sem filme. Os espaços brancos do texto devoraram o texto, os interstícios consumiram as pedras da construção, e contemplamos esta distância que ninguém poderá preencher. Também sob este ponto de vista, a obra se desfez ( se dé-faite).


Serge Daney, Cahiers du Cinéma, dezembro de 1967.

Tradução: Luiz Soares Júnior

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