sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Apocalypse Now, Copolla




Em se tratando de um filme fora do comum como Apocalypse Now, o mais sábio é partir do ponto que mais afetou a todos que viram o filme, ou seja, o lado decepcionante, ou mesmo desastroso, da última parte. Diante de um filme como esse, tornamo-nos todos espectadores de “primeira linha”, ou até mesmo excelentes críticos: ou saímos tocados ou não. Adoraria já indicar aqui que o filme é a narrativa não de uma, mas de duas, três ou até mesmo quatro subidas ( remontées”) ao longo do rio e que se, como diz Blanchot, “o Apocalypse decepciona”, é porque pertence à sua natureza decepcionar. Tudo o que o rio “carrega” ( charrie) não tem destino possível. Até mesmo o horror.
Primeira subida. Do concreto ao abstrato: a guerra.

A história do cinema é em parte ligada à história das guerras. O Exército Francês foi um dos primeiros utilizadores da invenção dos irmãos Lumiére. A guerra, tornada mundial, feita por todos contra todos, trouxe em seu bojo todo o cinema moderno europeu, de Roma cidade aberta a Tempos de guerra. Bazin falou do prazer suscitado pelo “espetáculo das destruições urbanas”, que ele chamava de “complexo de Nero”, para o qual o cinema parecia ser o lugar privilegiado. Na América, técnicas cinematográficas e tecnologia guerreira andavam em um passo conjunto: matar e filmar “progrediram” paralelamente. O espectador de cinema pouco a pouco se habituou a ser um sobrevivente. É este o espectador visado por Copolla hoje em dia, aquele que escapou aos massacres- ou que deles retornou-, mostrando-lhe a mais moderna das guerras, aquela cuja imagem ainda não caiu em desuso. Da Guerra do Vietnam, Copolla só retém o que a qualifica como uma guerra de um novo tipo ( mas um novo que integra o arcaico: as trincheiras, os dardos) e dissolve tudo o que poderia remeter a uma certa intemporalidade da guerra. Portanto, nada de cenas onde soldados discutem a respeito da guerra, por exemplo, cenas ainda freqüentes em Hawks, Walsh e Fuller. Nada desses discursos de combatentes onde se questiona sobre o horror da guerra em geral ( como no The Naked and the Dead de Walsh, que situa o debate no antimilitarismo) ou do aspecto bem-fundado em particular desta ou daquela guerra. É inútil, portanto, procurar no Apocalypse Now uma tomada de posição sobre o engajamento americano no Vietnam. Assim como The deer hunter, o filme participa de um projeto de amnésia política, com a diferença de que em Cimino, ela se faz do ponto de vista de um nicho reativo e em Copolla, a dimensão histórica é “curto-circuitada” por uma passagem direta do físico ao metafísico, através de um roteiro inspirado em Conrad. E ao mesmo tempo, Apocalypse é um testemunho sobre a guerra do Vietnam, “enquanto ela” não é a simples repetição da Coréia ou do Pacífico, dando a ver- pela primeira vez com tal intensidade- o que a constitui tecnológicamente em uma outra guerra. Quando, no The Naked and the dead, vemos um campo queimado, temos aí, para o espectador, uma bela imagem; em Apocalypse Now, quando Willard e seus homens encontram um batalhão que está prestes a arrasar um campo de napalm, isto é em primeiro lugar um espetáculo para os personagens do filme. Portanto, nada de pausas nem de tempos mortos, mas uma aceleração constante, mudanças de velocidade, elipses no coração das cenas. O som - um uso particularmente manipulador do Dolby- desempenha um papel preponderante, não com o objetivo de ancorar a imagem, torná-la mais inteligível, mas pelo contrário: para estilhaçá-la de seu interior, impedi-la de tornar-se o refúgio do espectador, para provocar medo. Dito de outro forma: nada de fora de campo. O efeito obtido é totalmente assombroso. O episódio com frequência citado como o melhor do filme em relação a isso ( com justiça, penso eu, e voltarei a isso) é o da batalha de helicópteros. Por que? Simplesmente pelo fato de que nós, tais como super-Fabricios del Dongo em Waterloo, compreendemos que jamais havíamos realmente visto um helicóptero. Encontramo-nos num “aquém” do sentido ( en-deçà du sens): um helicóptero é um helicóptero, sem mais nem menos; uma explosão é uma explosão, um morto um morto. Encontramos subitamente pelo caminho objetos que não querem dizer nada para ninguém, mas que matam. A guerra é antes de tudo este lugar, concreto demasiado concreto ( concret trop concret).
Suponho que se Copolla tivesse parado o filme antes do episódio Kurtz, ele teria se exposto a um escândalo geral, e os distribuidores ( que aqui são os produtores) teriam se recusado a mostrar o filme em suas salas. Inversamente, críticos de cinema ( nós, por exemplo) teriam achado o filme admirável, uma vez que formalmente adequado à ininteligibilidade da guerra , uma guerra vista de baixo, sem “subida”, elevação ( remontée). Ora, a dupla coação a qual Copolla não escapou é a seguinte: os espectadores ( e se fazem necessários milhões destes para tornar o filme rentável) vêm em primeiro lugar pelas cenas de guerra, mas dificilmente eles podem assumir este em primeiro lugar, antes de tudo ( d’abord): é-lhes necessário um fim, um desenlace, a inteligibilidade para justificar a posteriori estas cenas. O sentido último como cobertura do gozo ( jouissance) do non-sens ( falta de sentido). Quanto a Copolla, ele desejou filmar esta última parte, embora se saiba que teve grande dificuldade em decidir de que esta seria feita. Há portanto um momento onde, subido o rio, passaremos do concreto da guerra ( as coisas na cintilação de seu ser-aí, em seu “aparecer” mortal) à abstração ( as coisas que se põem a significar, às vezes pesadamente, a carregar sentidos para além de si próprias). É aí que o filme fracassa. Como se fosse impossível ( ou então, seria necessário um tempo maior) conduzir o espectador do estupor atordoado onde até então o tínhamos mergulhado para uma outra forma de relação com o filme, onde o espectador seria convidado a “pensar por si mesmo”. Ou o atordoamos ou o estimulamos a pensar, ou retemos o sentido ou o disseminamos. Copolla não escolheu realmente. Além do mais, se ele é um extraordinário engenheiro, se filma as operações militares com um real talento, com verdadeiras máquinas e verdadeiros corpos, ele está bem menos à vontade desde o momento em que a imagem torna-se sobre-significante ( sur-signifiante) e a narrativa metafórica. Evidentemente, este jogo entre a suspensão e a disseminação do sentido é a aposta das superproduções, dos filmes-monstros ( deixar o espectador estuporado, abrir as interpretações, e sobretudo não concluir: vejamos Tati, Fellini e sobretudo Kubrick, que sai terrivelmente engrandecido na comparação com Copolla , neste caso). O paradoxo é este: estes filmes só podem ser feitos lá – os Estados Unidos, a União Soviética, em todo caso em impérios- onde não é permitido “não concluir”, não edificar.
Segunda subida. Do filho ao pai: o padrinho.

Mas o rio carrega outra coisa. Por exemplo, o que está na base de toda ficção: a subida em direção aos nós fundadores da filiação, dos filhos para os pais, de Édipo para Laius. Curiosamente, o roteiro de John Milius faz-nos pensar em um pequeno filme, uma obra-prima, geralmente desprezada na outra parte do Atlântico, o Jornada tétrica de Nicholas Ray. Neste filme também um personagem se retirou da civilização e reina sobre um grupo de foras-da-lei e de destroços, no coração de um reino ao mesmo tempo esplendoroso e nauseante: os pântanos da Florida. Em Jornada tétrica, um jovem também vai ser progressivamente capturado pelo horror do que se trama neste reino, horror que ele sente bem lhe dizer respeito. Em Ray, ecologista “avant la lettre”, massacram-se pássaros, em Copolla é mais grave. Uma amizade confusa ligará dois homens, o mais velho vai intimidar o mais jovem e será finalmente morto por ele. Depois do assassinato, o jovem suspeita de que jamais será o mesmo homem. “Horror!”, exclama Willard nos últimos planos da versão atual de Apocalypse now, antes de embarcar novamente em seu barco. Ele descobriu o horror de toda filiação, a passagem pela violência mimética ( ele começa a se assemelhar a Kurtz), etc. Mas este horror é um truque. O verdadeiro tema- em Copolla, assim como em Ray, ou mesmo no Welles de Mr. Arkadin-, é a atualização ( mise à jour) da ligação homossexual, enquanto esta se encontra na base de toda sociedade, de toda “fraternidade”, portanto de toda guerra. Mas esta ligação não se desvenda assim tão facilmente. Há certamente uma situação edipiana, mas esta é vista do ponto de vista do grande esquecido do mito, Laios. Um Laious que teria disfarçado seu suicídio de assassinato para privar Édipo de sua verdade. Se descoberta há, ao termo da subida do rio, é que não se mata o pai, uma vez que este desejava morrer desde sempre e que esperava seu assassino com impaciência. Horror, portanto, mas não aquele que se supunha. Evidentemente, no filme de Copolla, toda esta parte fica no nível teórico, já que não chegamos muito bem a acreditar na identificação entre Willard e Kurtz. Era algo bem mais forte em Jornada tétrica, com Burl Ives e Christopher Plummer- que no entanto são atores bem mais limitados que Brando e Sheen-, mas também porque Ray é um imenso cineasta. O falso pai, “o pai falseado” de Apocalypse now, é Brando, alguém que exerce antes um protetorado que uma lei, antes um “padrinho” que qualquer outro papel, em todo caso um mito vivo. Pois no influxo de Apocalypse now, há também a velha Hollywood.
Copolla pertence a uma geração de cineastas que teve de começar sua carreira à sombra da geração dos grandes ancestrais, vivos ainda. Geração que começara na França, quando Godard inscrevia literalmente o corpo e o nome de Fritz Lang ( em O desprezo) , e que há pouco tempo chegou à América ( Truffaut no filme de Spielberg). Aí também pode-se dizer que a “mise à morte” de Brando é uma operação infinita- devido à posição bem particular de Brando na indústria americana: ele é um pouco o Kurtz desta indústria-,infinitamente decepcionante também.
Terceira subida. O Um e o Outro: a América.
Apocalypse now é um filme excepcional, que seja. É também um filme americano médio pós-Vietnam. O cinema americano, desde um certo tempo, não cessa de rondar em torno de um tema que é a presença do Outro em nós. Outro no sentido de alien, título do maior sucesso do verão nos EUA.”Nós”, é claro, é novamente o Americano, considerando-se abusivamente como a espécie abusivamente como equivalente geral da espécie humana. Salvo que “ser” americano não é jamais algo tão evidente nem tão simples ( não insisto aqui sobre o melting-pot e outros mitos), e que me parece que se esteja sempre pronto a fazer não importa o que para se ser “ainda mais americano” ( não importa o que: Kazan). Ideológicamente, o objetivo de todos esses filmes ( Alien, O Exorcista, The deer hunter, mesmo Encontros de terceiro grau) é tornar os Americanos ainda mais americanos ao fazê-los exorcizar um Outro ( em geral maléfico) que os assombra ou habita. A novidade e a força desses filmes está em que eles decidiram não economizar nos meios ( a tecnologia ainda e sempre) para mostrar o outro, o alien em nós. Até aqui eram sobretudo filmes B que se ligavam nesse tema ( nos anos 50, em torno do anticomunismo), mas sem possuir meios, limitados a truques fracos ou a refinamentos de escritura ( o fora de campo de Tourneur) , só conseguindo excitar espectadores muito naifs ( ingênuos) ou muito sofisticados ( cinéfilos). A decisão de mostrar o “Não-Mostrável” ( Immontrable) é muito recente. Há diferentes versões. Em Cimino, o Asiático que é tido por responsável por despertar a besta que dormita em nós: matamo-lo, ao mesmo tempo em que lhe impomos a vergonha de ter despertado a besta: refrão conhecido. Em Ridley Scott, ( Alien), é o monstro proteiforme, literalmente surgido do corpo humano e ocupando a astronave como um câncer, cujas imprevisíveis metástases terrificam. Em Friedkin ou Kubrick, são os temas mais codificados, mais literários, do diabo ou do duplo. Quanto a Apocalypse now, é sem dúvida aquele que, no nível do roteiro, possui a maior dignidade literária ( Conrad). Aí, Kurts e Willard são da mesma espécie, da mesma raça, do mesmo país, da mesma formação ( Exército). No entanto, um deles tornou-se um monstro. Um monstro ao qual é preciso se identificar. Copolla escala o rio da civilização em direção à barbárie, não a barbárie dos outros, mas aquela da qual se provém, da qual toda civilização provém, do lado da horda paterna. Se esta escalada também não chega ao seu destino ( aussi tourne court: não segue até o fim do caminho, volta no meio) , é porque Copolla realmente não escolheu entre delírio surrealista e crueldade etnográfica. Este “povo do abismo” que idolatra Kurtz não é suficientemente verossímel para que o momento forte desta última parte, o abate paralelo de Kurtz e do rebanho sacrificado , suscite todo o horror sagrado que se poderia encontrar em um Pasolini ( em Pocilga: “Matei meu pai, comi carne humana, tremo de alegria”...)

Quarta subida. O espetáculo e o homem de espetáculo: Copolla.

Copolla, sem dúvida, não é um cineasta tão profundo quanto Kubrick ( para ficarmos nos gigantes). Vimos que seu jogo de pistas não leva realmente a lugar nenhum; decepciona. No entanto, é esta outra subida do rio que leva Willard até Kurtz de espetáculo em espetáculo, quase de “show em show”. É aí que Copolla é com freqüência um grande cineasta. O que ele retém da guerra, desta guerra em particular, é que ela se tornou para aqueles que a fizeram ( do lado americano) um vasto espetáculo sem metteur em scéne. Desta guerra a respeito da qual não se discute mais, que não se compreende mais, não se pode fazer nada senão tableaux vivants ( quadros vivos),show business.Willard- totalmente sintetizado no olhar de Martin Sheen- é o espectador por excelência: tudo o que ele encontra pelo caminho é ou vivido ou deliberadamente organizado como espetáculo. Vemos isso no plano rápido onde Copolla filma a si mesmo como jornalista televisivo, nas fantasmagorias do final, produtos do delírio de Kurtz, passando pelo jovem Negro que canta ‘Satisfaction” no barco. Esta espetacularização também se mostra na figura de Denis Hopper, armado com câmeras e a aparelhos fotográficos, uma espécie de primeiro assistente de Kurtz, seu bufão e porta-voz ( griot). Também na extraordinária cena do teatro no batalhão armado ( por um instante, tive a impressão de que Copolla tocava na essência da guerra: sobre uma pista de dança flutuante e em uma nuvem de fumaça rosa, a exibição noturna e sonhada de moças diante de uma massa de rapazes). Igualmente na cena realmente apocalíptica das trincheiras, onde todos confundem Willard com o oficial encarregado. Mas é sobretudo verdadeira – esta espetacularização- no extraordinário episódio da batalha de helicópteros e do personagem interpretado por Robert Duvall. Se esta cena é a melhor do filme, é porque ela consegue manter a dosagem entre o real ( o ser-aí das coisas) e o “espetáculo” ( desejado por qualquer um). Duvall não é o deus ex machina, o demiurgo, que Willard busca; é um factótum ( bricoleur). Ele apenas pode bombardear uma cidade por capricho ou fazer os soldados surfarem. É no filme uma espécie de antecipação de Kurtz ( com o parênteses de que este personagem me parece infinitamente mais convincente); Kurtz que, ao fim do rio e no coração do caos, é o último metteur em scéne, que possui ainda atores para dirigir, um reino para decorar e um público para ouvi-lo recitar poemas de T. S. Eliot. Mas justamente Copolla está mais para um empreendedor- como o personagem de Duvall- que para um visionário, como Kurtz.

Logo, “o Apocalipse decepciona”. Em termos lacanianos, pode-se reprovar a Copolla ter tentado o impossível: filmar o irrepresentável phallus. Mesmo o crânio de Brando não é suficiente. Mas foi tanto por cálculo quanto por ingenuidade ( naiveté) que ele deve ter feito o filme assim. Pois ele conseguiu rodar o filme exatamente como queria, apesar das inumeráveis peripécias; conseguiu inclusive tirar um filme de duração quase standard do enorme material filmado, um filme com um fim, etc. Talvez apenas tenha lhe faltado o poder de assumir até os seus limites uma economia suntuosa ( une économie somptuaire), de ganhar “o direito de não concluir”.

Serge Daney.
Tradução: Luiz Soares Júnior.

5 comentários:

  1. Tá bom. Vou te mandar os textos pra revisão agora, 2 dólares a página.

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  2. Esse texto é uma viagem.

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  3. Você é inteligente, mas é difícil acompanhar sua linha de raciocínio. São muitas idéias/informações que se cruzam e muitas sem um porquê definido.

    À parte disso, há pensamentos interessantes no texto!

    Boa sorte em suas críticas e diminua o café :)

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