quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Cat people, Tourneur


Antes de tudo, não esquecer que se trata aqui de um filme essencial, não apenas na carreira de seus dois principais artesãos ( o produtor Val Lewton e o realizador Jacques Tourneur), na história do gênero fantástico mas também e sobretudo na evolução do cinema como um todo. Borges consagrou uma de suas enquètes “, O pudor da História”, a mostrar que as datas mais importantes da história não são forçosamente as mais espetaculares. ‘Veio-me a suspeita , escreve ele, que a história ,a verdadeira história, é mais pudica, e que as datas essenciais podem também permanecer por longo tempo secretas”. Se isto é verdadeiro em relação à história política e social, o é ainda mais em se tratando da estética. Cat people representa no cinema uma destas datas essenciais e secretas. A gênese do filme é demasiado conhecida, já que Jacques Tourneur e o roteirista DeWitt Bodeen a contaram ( respectivamente, em Présence du Cinema número 22-23 e Films in Review, 1963) e que Joel Siegel, em seu notável “Val Lewton. The Reality of Terror”, recolheu os testemunhos mais próximos do produtor. Charles Koerner , o novo responsável pela RKO, pede a Val Lewton para realizar um filme a partir do título Cat people, que lhe parece suficientemente excitante e atrativo. Ele julga que os monstros do pré-guerra ( vampiros, lobisomens) já tiveram sua época e que é preciso buscar alguma coisa nova e insólita.
Val Lewton encomenda o roteiro a DeWitt e a direção a Tourneur. Mas a história propriamente será pensada a três. Val Lewton tinha primeiro pensado em adaptar uma novela de Algernon Blackwood, depois decide contar uma história contemporânea, inspirada de uma série de desenhos de moda franceses que mostravam modelos carregados por manequins com cabeças de gatos. Cada um dos três autores trará sua pedra à construção do filme e, por exemplo, a cena da piscina será suscitada por uma lembrança de Tourneur, que quase tinha se afogado, sozinho numa piscina. Lewton aprecia particularmente estes momentos de angústia, como na cena em que Alicem se sente perseguida por uma presença invisível. Tudo passará, no estágio da escritura do roteiro como na realização, pela sugestão, pela sábia progressão das cenas que exprimem o terror e a violência sem que elas jamais sejam totalmente representadas na tela. Os paroxismos serão obtidos por uma certa doçura insidiosa e paradoxal do estilo, que se põe a seguir de muito perto os personagens e os mergulha em uma atmosfera cada vez mais irrespirável, atmosfera esta que o espectador é levado a partilhar com eles, embora esta não provenha de nenhum elemento horrífico concreto.
Rodado em 21 dias e ao custo de um orçamento bem modesto de 130.000 dólares, Cat people será o primeiro de uma série de quatorze filmes produzidos por Lewton ( dos quais 11 para a RKO) e, na carreira de Tourneur, o primeiro no qual ele se tornou verdadeiramente ele mesmo, graças à influência ultra-criativa de seu produtor, Lewton. Este o inicia, disse Tourneur, em uma “poesia da qual ele tinha muita necessidade” ( vide sua entrevista televisionada para FR3 por Jean Ricaud e Jacques Manley, maio 1977).
Uma vez terminado, o filme foi muito pouco apreciado pelos chefões da RKO ,e vai sair como “tapa buraco” no Hawai Cinema de Los Angeles , que tinha acabado de terminar sua exibição de Cidadão Kane. Cat people teve mais sucesso que seu ilustre predecessor, e seu triunfo tirou da lama a RKO em 1941, ano muito difícil para a empresa.
Cat people permitiu a Val Lewton produzir entre 1942 e 1946, sempre com orçamentos muito reduzidos que lhe asseguraram uma total liberdade de concepção e execução, um dos mais extraordinários conjuntos de filmes fantásticos do cinema hollywoodiano ( dentre os quais se destacam particularmente o sublime A sétima vítima e Bedlam, que fecha a série). Cat people lança também a verdadeira carreira de Tourneur , que dará em seguida na mesma linha duas obras ainda mais perfeitas ( I walked with a zombie e Leopard man), antes de impor um olhar extremamente inovador sobre os outros gêneros hollywoodianos que ele ilustra.
Com o passar dos anos, mais a contribuição do filme parece incalculável. Com ele, o fantástico- que nunca será como antes- descobre que pode retirar sua máxima eficácia da discrição, que pode inventar novos meios de empolgar o espectador dirigindo-se à sua imaginação. A riqueza do trabalho sobre a luz sobretudo vai contribuir para interiorizar o conteúdo do filme nos personagens e a provocar uma identificação mais sutil e marcante do espectador com os personagens. É aí que, de forma pudica, se situa a revolução radical do filme. Pode-se resumi-la com uma única palavra: é a revolução do intimismo. Ela delineia, por assim dizer, uma linha de fratura entre o cinema do pré-guerra e o cinema moderno. O que o cinema vai ganhar é uma maior proximidade, uma maior intimidade- que se poderia quase qualificar de psíquica- do espectador com os personagens, explorados nas profundidades de seus medos, suas angústias, seu inconsciente. Esta contribuição não é contraditória- -longe disso- com o neo-realismo , que vai chegar igualmente, ao menos em Rossellini, a intensificar a intimidade do espectador, sob o plano social e em seguida espiritual, com os personagens.
O recuo agora é suficiente para que Cat people e os primeiros filmes de Rossellini depois da guerra apareçam, um secreta e subterraneamente,os outros de maneira espetacular e talvez um tanto quanto tonitruante, como os filmes mais fecundos destes últimos cinqüenta anos. O caso de Cat people é particularmente estranho, uma vez que ele nos leva a privar de mais intimidade com uma personagem ( aquela de Simone Smon) que não pode ser íntima de ninguém. Sua maldição está de tal maneira engastada na profundidade de seu ser que apenas uma investigação aprofundada pode permitir entrevê-la. Antes desse filme, o cinema era um espelho mais ou menos fiel , atravessado ao longo do caminho. A partir de Cat people, ele tende a se tornar este instrumento de mergulho que penetra no mais profundo dos personagens como em um poço. Durante os anos que se seguiram, o filme noir vai reforçar esta evolução, colocando a seu serviço, sob uma forma atual e contemporânea, as aquisições distantes do expressionismo, casadas à uma descoberta recente e com freqüência rudimentar da psicanálise. Ponto de partida da obra real de Tourneur, Cat people estabelece o que será o credo dessa obra e seu modo de abordagem da realidade. Toda realidade é da ordem do mistério, do estranho e do inefável. É preciso apreendê-la do interior, pela sugestão e pela imaginação. O olhar que penetra mais profundamente nela tem todas as possibilidades de ser o olhar de um estrangeiro, e Tourneur vai permanecer na América um dos cineastas mais estrangeiros a este país, aberto a uma contínua surpresa, a uma engenhosa e total engenhosidade. Elas vão fazer dele o pioneiro secreto, um explorador radical de vários territórios diante ( e antes) do mundo.

Nota: a filmagem de Cat people é evocada sob forma de referência nos primeiro dos três flash-backs que constituem a trama de Assim estava escrito, filme demasiado brilhante mas um tanto convencional que queria ser para Hollywood o que A malvada de Mankiewicz foi para a Broadway. O personagem do produtor Jonathan Shields ( Kirk Douglas), arrivista e perfeccionista, não tem quase nada a ver com Val Lewton, e se assemelha muito mais a David Selznick. No entanto, é este personagem que decide que será preciso criar a atmosfera fantástica pela sugestão, pela discrição, a obscuridade e mostrando o menos possível. Uma continuação bem distanciada foi dada a Cat people em The curse of the cat people ( saído na França em 1971), com uma parte dos atores e personagens de Cat People. O filme é um conto de fadas, aliás muito bem realizado, que tem mais a ver com o maravilhoso do que com o horror. Ele foi começado por Gunther Von Fritsch e terminado por Robert Wise, que assina aí, como co-realizador, seu primeiro trabalho de direção. Remake homônimo de Cat people sem nenhuma magia por Paul Schrader ( 1982) com Nastassja Kinski.

Jacques Lourcelles.
Tradução: Luiz Soares Júnior

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