quarta-feira, 7 de julho de 2010

Ensaio de um crime, por Eric Rohmer


Archibald de la Cruz teve a feliz sorte de ver uma outra mão perpetrar crimes que uma não menos feliz sorte lhe impediu de levar a termo. Tal é em duas palavras o argumento do filme que Luis Buñuel realizou no México, há três anos. Como todo conto bem construído, este deixa à interpretação uma margem considerável. Devemos entender simplesmente, como o autor nos sugere numa breve cláusula- cuja ingenuidade só é disputada pelo esplendor de sua ilustração- que é conveniente não tentarmos complicar a vida, e assim mandar ao diabo escrúpulos e casuística? Ou, forçando um pouco a interpretação, devemos considerar os objetos femininos destes assassinatos como os diferentes símbolos dos tabus burgueses ou religiosos que todo homem que se dá ao respeito deve se apressar a abandonar?

Devemos enfim ver neste apólogo uma adição buñueliana à famosa obra de Thomas De Quincey: Do assassinato considerado como uma das Belas Artes, caro aos surrealistas de todos os matizes? Na dúvida, vamos nos ater às aparências, ou seja, às imagens, amplamente fascinantes, embora sejam isentas do cinismo que um Hitchcock ou um Stroheim pudessem ter-lhes imprimido. Mas deixemos a Buñuel seu universo próprio, sobretudo quando temos a chance de encontrá-lo melhor “calçado” ( charpenté) do que de hábito.Eu acabei de empregar o termo “ingênuo”. Não foi com má intenção. A crueldade de nosso herói é a mesma das crianças que torturam um animal ou maltratam um brinquedo: e, de fato, é exatamente sobre um brinquedo- um manequim- que esta crueldade vai se exercer. Sadismo? Estamos a léguas disso. A morte ( lembrem-se da fusão da boneca no forno) parece restituir a vida ao rosto morto: o olho brilha, movimenta-se, a carne palpita, relaxa, à medida em que se decompõe, e percebemos bem que, neste momento, Archibald, que possui o coração mais puro do que acreditara, apaixona-se pela moça que servira de modelo à figura de cera. Da mesma forma, a face “embonecada” da jovem noiva se animará por um segundo: quando o ex-amante empunhar contra ela o revólver e fazer fogo...

Se insisto sobre esses detalhes, é porque busco sempre em Buñuel- cujos “dadas” sociais ou filosóficos me incomodam frequentemente por seu caráter primário- o momento onde o traço ultrapassa a intenção da mão que o delineia. Deplorei muito a ausência destes momentos escolhidos em seus dois últimos filmes ( e sobretudo em Cela s’apelle l’aurore), por não ter sido satisfeito para além de meus desejos. E isto na medida em que a visão anterior e privada de Archibaldo havia dado justamente fundamento às minhas exigências.

Não há sátira melhor do que a que se nutre da sobriedade de elementos ordinários. Clero e polícia figuram em bom lugar na ação; o golpe lançado contra estes é adolescente, mas vivo, elegante, sem precauções oratórias. Muito bem-vinda igualmente a caricatura dos turistas americanos: nenhum ou quase nenhum exagero.

Prossigamos nos elogios. A arrogância um tanto risível dos personagens se acorda com sua classe e meio social. Os efeitos mais preciosos, os gestos mais plasticamente concertantes só participam discretamente deste estatismo, que não é em geral o menor pecado de Buñuel. Assim como liberara o herói, o manequim libertou Buñuel de seu complexo de imobilidade, vítima expiatória do crime de lesa-Majestade ao cinema, que é o de conceber a beleza segundo as normas de Baudelaire.


É por este motivo que passarei rapidamente pelos méritos mais evidentes do filme, os pictóricos. E no entanto, este décor moderno com seus brancos e negros untuosos, estes bibelots barrocos, estas roupas sofisticadas, este magnífico parque do final do filme, são em grande parte responsáveis pela fascinação exercida sobre nós por estes crimes imaginários ou reais , luxuosos e cintilantes como uma vitrine de joalheria. Que importa, afinal, a significação do símbolo? O que nos é dado a ver contenta suficientemente um apetite de essência muito delicada para ser insalubre. Aí reside, penso, a verdadeira moral da fábula.

Já devem ter adivinhado que, de todos os filmes, antigos ou modernos, de Buñuel, Archibald de la Cruz é aquele que mais estimo, o mais prazeroso e bem acabado. Eu o prefiro até mesmo a El, onde o ar que circulava não possuía esta limpidez cristalina. Ali, o entomologista mascarava o poeta; percebia-se um certo desprezo pelo personagem. Aqui, Buñuel é o cúmplice amável de seu amável herói, se não de intenção ao menos de fato. E sabemos bem que, no cinema, não são as intenções que importam.



Eric Rohmer


Arts, outubro 1957


Tradução: Luiz Soares únior.

sábado, 3 de julho de 2010

Abaixo-assinado pela abertura dos aqrquivos da ditadura militar. Todo mundo que aspira à cidadania ( que não é inata nem natural!, sempre bom lembrar) tem que assinar.


http://www.oab-rj.org.br/forms/abaixoassinado.jsp


sexta-feira, 28 de maio de 2010

Uma brincadeira de crianças. Sobre Misterioso objeto ao meio-dia


Misterioso objeto ao meio-dia segue o percurso de uma equipe de cinema na Tailândia que, a cada etapa de sua trajetória, solicita a anônimos para que improvisem uma história. O ponto de partida da narrativa é dado pela primeira pessoa encontrada, uma vendedora ambulante de peixes; em seguida, cada narrador amador é informado do estado em que ficara a narrativa , e a continua à sua maneira. Dois regimes de imagens se alternam no filme; o regime “documentário” dos habitantes das vilas em sua vida cotidiana e filmados na iminência de improvisar seu segmento do conto; e um regime de “ficção”, tradução imediata, com personagens, da narrativa que está sendo improvisada. Misterioso objeto ao meio-dia é um filme alegre, que suscita um prazer lúdico e uma fruição infantil do cinema: isto se dá por meio do jogo de pistas orquestrado pelo autor entre documentário e ficção, entre imagem e som, entre o filme e sua fabricação.

Dentre as inumeráveis leituras possíveis do filme, escolhamos duas. Podemos marcar uma cisão entre “Misterioso objeto” e “ao meio-dia”, e assim reproduzir a estrutura clivada do filme. Como Eternamente sua e Mal tropical, ele é dividido em duas partes bem desiguais: o conto e sua elaboração pelos habitantes das vilas, cujo fim é indicado por um título em forma de créditos, e uma espécie de coda 1 , de apêndice sem intrigas, delimitado e intitulado pelo sibilino carton “Ao meio-dia”. “Misterioso objeto” seria o título da primeira parte, e teria duas significações. Ele pode designar o misterioso objeto que uma narradora introduz no conto: uma bala que, ao cair do bolso do professor, se transforma em um rapaz. O objeto misterioso é também o próprio conto, cadáver requintado ( cadavre exquis) 2 de cinema, monstro estético produzido pelo encontro sobre a mesa de montagem da narrativa oral tradicional, do teatro amador e do cinema moderno. “Ao meio-dia” seria o título de um curto documentário sobre jogos infantis ao meio-dia: algumas crianças jogam futebol da escola, outras se divertem com um cachorro no quintal de casa, situado numa clareira da floresta.

Segunda leitura: o misterioso objeto ao meio-dia é o carrinho de plástico que as crianças amarram no pescoço do cachorro, enquanto uma mulher s instiga a ir lavar as mãos antes de almoçar. Colocar um brinquedo no pescoço de um cachorro é fazer uma versão infantil do “cadavre exquis”: ligar dois elementos heterogêneos e ver o que produz o seu encadeamento.

A coda documentária expõe a arte poética do filme ou, se preferirem, figura um auto-retrato do cineasta enquanto criança que brinca. Primeiro ponto: as ficções afloram nos terrenos baldios dos tempos mortos da vida cotidiana. Segundo ponto: fazer aflorar uma ficção, consiste em fazer raccord entre fragmentos de vida que não se encadeiam, sem procurar preencher os vazios. Terceiro ponto: inventar semelhantes histórias é um jogo de crianças. O cinema de Weerarasethakul encontra sua fonte na memória da infância, ou seja, num tempo onde a vida era apenas tempos mortos, onde o mundo não era ainda o teatro saturado de nossas preocupações , mas uma caixa de brinquedos da qual podíamos dispor livremente para ousar inventar colagens, inventar relações. Weerasethakul não perdeu o fio deste tempo, e seu cinema no-lo oferece. Ele surpreende nosso hábitos de cinéfilos adultos restituindo ao cinema a juventude despreocupada de uma arte capaz de todas as hibridações: a iniciação amorosa toma emprestado as rotas dos contos ancestrais ( Mal dos trópicos), desenhos desajeitados são impressos na superfície narrativa de uma escapada amorosa ( Eternamente sua), legendas permitem a macacos falarem, etc


Colocar um carrinho de plástico no pescoço de um cachorro é também fazer uma montagem áudio-visual. A fuga amedrontada do animal, fonte do prazer infantil, é causada menos pelo brinquedo do que pelo ruído que ele emite ao se arrastar e perambular pelo chão.A invenção consiste em montar um som e uma imagem que a priori não “vão bem” juntas, e ver o que produz a sua junção.

A montagem do som e da imagem é o gesto motor de um filme cujo fim consiste em encadear o registro documentário de uma seqüência de improvisações orais e os fragmentos “encenados” ( mis en scène) da ficção improvisada. Ao invés de simplesmente justapor o documentário e a ficção, de fazê-los alternar numa lógica de ilustração ou de revezamentos, Weerasethakul utiliza a disjunção entre imagem e som para organizar a confusão entre estes dois registros. Várias vezes, o espectador não sabe dizer se o que assiste é de caráter documental ou ficcional. Apenas o som pode guiá-lo... ou perdê-lo.


Este poder do som se mostra mais evidente na primeira passagem à ficção. Depois do carton “Era uma vez”, o filme começa com um longo travelling tomado do interior de um carro em movimento. Esta abertura possui o valor de um programa estético e dramático: ela coloca, ligando-os, as aventuras do conto oral e o princípio de disjunção áudio-visual. O desfile contínuo da paisagem urbana é acompanhado pelo som fora de campo do rádio do carro: sobre um fundo de canção pop sentimental, uma voz masculina narra uma história de amor fracassado, depois recita uma mensagem publicitária. Um outro homem toma a dianteira – adivinhamos, pela mudança no registro da voz, que se trata do condutor do carro falando num auto-falante: “A cavala tá chegando! Direto de Mae Khong! Cavala ao vapor e cavala salgada!” Nos fundos do furgão está sentada uma mulher. Depois de alguns planos de diálogos entre os vendedores e os camponeses, a vendedora de peixes, de frente para a câmera, começa a falar de sua infância. É uma lembrança dolorosa. Pouco sensível à comoção da narradora, o interlocutor fora de campo- compreenderemos mais tarde que se trata da equipe de cinema encarregada de coletar os fragmentos do conto coletivo- pede-lhe para contar uma outra história, “não importa qual história, um romance ou outra coisa”. Aparentemente constrangida, a vendedora demora a continuar. Sem ruptura sonora, sobre o fundo do mesmo som ambiente, a mudança de plano transporta-nos para o interior de uma casa: um rapazinho está sentado diante de uma mesa, uma mulher olha pela janela no plano de fundo. Depois de alguns segundos, ouvimos novamente a voz do vendedor de peixes , ligeiramente abafada pela distância: “A cavala tá chegando! A cavala de Mae Klong!” Enquanto a mulher deixa a janela para ficar próxima ao rapaz sentado à mesa, o vendedor prossegue com seu discurso. Som e imagem parecem sincrônicos, a continuidade sonora incita a interpretar a montagem-imagem no sentido da continuidade: simplesmente passamos para o interior da casa perto da qual estacara o vendedor de peixes, cuja voz entra pela janela, diante da qual se mantinha a mulher, sem dúvida atraída pelo ruído do furgão. Até que ouvimos novamente a voz da vendedora: “Digamos que havia uma casa. E nela um rapaz doente e uma professora”. O nível desta voz surpreende: ela é mixada muito intensamente para estar vindo do exterior, do fora de campo. O ponto de escuta é o mesmo que o do plano precedente: o interior do furgão. As palavras da vendedora, ao redobrar o visível, modificam a posteriori a compreensão da montagem e revelam a passagem, no corte, a um outro regime de imagem. A impressão de continuidade era falsa: aqui começa a narrativa improvisada do conto e, simultaneamente, sua encenação cinematográfica. O som não era sincrônico, ele faz persistir, no fora de campo, o universo documentário sobre as imagens mudas da ficção.

Ao superpor a captação documentária da improvisação oral e a recreação ficcional do conto, Weerasethakul realiza realiza um fantasma de cinema e um sonho de criança: aquele de um encadeamento imediato do visível sobre o oral, da imagem sobre a palavra. A potência performática da palavra é atualizada na economia do filme pelo poder do som sobre a imagem. Em várias ocasiões, a imagem é colocada em suspensão, indeterminada, entre os dois regimes. Então, é o som que é encarregado , com um retardo mais ou menos longo, de qualificar a imagem, de fazê-la se colocar de um lado ou de outro da fronteira porosa entre ficção e documentário.

A disjunção áudio-visual abre assim um espaço comum aos dois regimes do filme. As ficções não são concebidas ex nihilo em um espaço separado do mundo, mas são tomadas pelas malhas da realidade cotidiana, à espreita de sua realização. O percurso da equipe de cinema pela Tailândia age como um revelateur. A ficção do conto eclode espontaneamente à sua passagem. Improvisar um conto parece então o gesto mais natural do mundo: lançamo-nos nesta tarefa enquanto preparamos o jantar, depois o vizinho se engaja no processo. A única condição a esta cristalização espontânea reside na disponibilidade oferecida pelo tempo morto. É preciso saber “tomar/ dar um tempo”, distanciar a trama da vida cotidiana, suspender as ocupações para nos tornarmos disponíveis à potência ficcional que cada um carrega em si. Esta qualidade de presença no mundo não é dada a qualquer um: os tailandeses anônimos que desfilam diante da câmera impressionam pelo jogo que sabem introduzir nas engrenagens de suas vidas.

A passagem sem descontinuidade do documentário à ficção aparece explicitamente no filme. As convenções de uso querem que o making of seja um objeto em separado, filmado por um outro realizador, sob um outro ângulo, distinguido do filme por uma espécie de imagem mais “docu”. Em um plano de Misterioso objeto, ficção e making of da ficção se enlaçam em uma mesma duração, segundo o mesmo ponto de vista. A criança extra-terrestre saída do carro está sentado em uma cadeira, outras pessoas no chão. Um estratagema invisível de montagem faz desaparecer, depois reaparecer o extra-terrestre. O professor, de pé, termina um monólogo com estas palavras: “Mas bem, eu vou te contar esta história mais tarde”. Depois de alguns segundos, um rapaz parcialmente sentado se levanta, sai do recinto por uma abertura à direita do campo, reúne algumas folhas grampeadas, e entra novamente. O extra-terrestre subitamente se dirige à câmera e pergunta: “você filmou mesmo? Foi bom, terminou?” Uma discussão começa entre os atores e um homem fora do campo; quando ele entra no campo, reconhecemos Weerasethakul. Nenhum “cut!” fora pronunciado para assinalar o fim da tomada, a interrupção da ficção. A continuidade se apóia na retomada, depois da passagem ao making of , do “efeito especial” utilizado alguns segundos antes na ficção.

Não é mais o personagem do extra-terrestre que desaparece, mas um simples ator- fôra seu script que ele havia tomado entre as mãos durante os poucos segundos flutuantes entre a ficção e o documentário. Neste plano, o jogo entre o som e a imagem é invertido em relação à primeira passagem à ficção. É a imagem que produz a continuidade, enquanto que a descontinuidade é produzida pela trilha sonora, pela passagem dos atores do diálogo escrito à conversação livre com a equipe do filme. Mas é sempre o som que vem suscitar a ambigüidade, qualificar uma imagem desdobrada, suspensa entre a ficção e sua fabricação.

Walter Benjamin apresenta o “contador de histórias” como uma espécie em vias de desaparição nos tempos do romance moderno e do cinema. O conto não é tecnologicamente reprodutível; ele se transmite oralmente. Ao contrário do romancista, recolhido em sua solidão para escrever, o contador conta histórias entre os outros homens, sua narrativa não está separada de sua vida: “o que ele conta torna-se experiência naqueles que escutam sua história”. Misterioso objeto prova que o cinema, longe de desqualificar a forma oral de transmissão de experiências, constituída pelo conto, pode, pelo contrário, prolongá-la, tomar por sua própria conta a tarefa de encadear- uma história com outra, a ficção e a vida, a oralidade e as imagens. O filme de Weerasethakul não cessa de encaixar os contos uns nos outros. O conto principal é precedido de duas narrativas, uma escutada no rádio, a outra dita pela vendedora de peixes. A criança que termina a história da professora e do extra-terrestre não pode se impedir de implicá-la em um outro conto: uma história de tigre-feiticeiro, embrião de Mal dos trópicos- filme cuja abertura poderia ser o fim de um conto sobre ao qual este filme se liga...e assim sucessivamente, até o último encadeamento, o do carrinho no pescoço do cão, ponto de partida possível para um outro conto. Emaranhado na trama da vida cotidiana, dela se deslindando em direção ao maravilhoso para sem cessar retomá-la, o cinema de Weerasethakul assemelha-se ao conto, tal como descrito por Walter Benjamin: “é a memória que tece o fio que em definitivo forja todas as histórias. Pois estas se ligam todas entre si, como os grandes contadores de histórias, particularmente as Orientais, sempre se empenharam em sublinhar. Em todos eles vive uma Scheherazade, para quem cada episódio de uma história evoca imediata e irreversivelmente outra”.



Cyril Neyrat, Vertigo número 27 , revue de cinéma


Tradução: Luiz Soares Júnior.



Notas:



  1. Coda: Palavra italiana que designa o segmento com que se termina uma música.

2. Cadavre exquis: Jogo literário inventado pelos surrealistas que consiste na composição de um texto ou desenho por várias pessoas, sem que nenhuma seja informada do elemento trazido pelo colaborador precedente. Assim, no romance coletivo “L’amiral flottant”, cujo primeiro capítulo foi escrito por Chesterton, nenhum dos autores conhecia a continuação da história, e deve, segundo Michel Lebrun, se empenhar a deslindar a situação problemática com a qual o predecessor concluíra o capítulo precedente e, por seu turno, a complicar o máximo possível o presente capítulo, a fim de colocar o próximo autor na mesma dificuldade de execução.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Lost Highway: o isolamento sensorial segundo Lynch

A leitura do roteiro de Lost highway, que acaba de ser lançado, é muito instrutiva. Revela-nos que a versão final do filme de David Lynch é o resultado de um refinado trabalho de cortes. Todas as seqüências com caráter explicativo foram excluídas. Todas as junções narrativas foram cuidadosamente eliminadas. O filme ,é claro, ganhou em potência elíptica. Esta “poda” narrativa lhe permitiu sobretudo atingir uma perturbadora opacidade, que procede de uma série de golpes de força rítmicos absolutamente envolventes. Deste ponto de vista, Lost highway é certamente um dos filmes contemporâneos que mais suscitou interrogações da parte de um espectador desorientado, e que busca se situar. Podemos assim presumir que Lynch projetou, com este filme profundamente inovador, criar uma relação totalmente inédita com o espectador.
Por um lado, o filme distribui uma multiplicidade de signos, de índices, de enigmas, de lapsos que, por meio de um jogo de pistas, espelham uma dimensão ( doublure, dobra) secreta da realidade; esta, tal qual um inconsciente muito ativo, se manifestaria permanentemente de forma descontínua, e encobriria a vida com um leve véu paranóico. É a função conspiradora e esotérica do roteiro. Tudo em Lost highway, aliás como também em Twin Peaks, o filme e a série, remete a um complot inexprimível, feito de premonições e de percepções extra-sensoriais, o que os aparenta tanto a uma certa tendência do cinema moderno, a do sentido suspenso ( ver a recente programação da Cinemateca Francesa em torno do tema da conspiração), quanto à lógica do romance-folhetim, de que a série X Files ( exibida no M6) é um avatar absolutamente apaixonante, e cuja estética deve muito à série Twin Peaks. Os signos flutuam e não mais se ligam uns aos outros. A narrativa não está mais em primeiro plano, mas tem essencialmente uma função rítmica ou climática. Notemos que esta forma de abstração lírica não é absolutamente o apanágio de um cinema de autor, ou de artista, mas encontra insuspeitáveis ressonâncias no cinema de ação. De The last action hero ( John McTiernan) ao recente e curioso Au revoir à jamais ( Renny Harlin), passando por Die Hard 3 ( McTiernan ainda) ou L’Effaceur ( Charles Russel), a distribuição de signos enigmáticos e a ausência de uma ligação aparente entre eles tornou-se uma verdadeira figura de estilo. A ausência de raccord no nível espacial encontra enfim sua correspondência no nível mental. Em Lost Highway, o complot é sem fim, sem fundo, o inimigo está no interior do país ou do cérebro, e as significações deliram. Pois toda a arte de Lynch, que atinge seu auge em Lost Highway, consiste em fazer a América delirar- seu puritanismo, suas soap-operas, suas perversões ocultas, seus complots- ou seja, fazê-la sair de seus esconderijos.
Por outro lado, Lynch busca um contato hiper-sensorial com seu espectador; ele trabalha no sentido de colocá-lo em um certo estado de receptividade, fazendo-o simultaneamente se desorientar ( perdre pied) e encontrar uma nova relação com fluxos de percepção excessivamente sutis, que se aparentam, é claro, aos que nos é possível atingir através do uso de uma droga. É a função musical ou cerimonial da mise en scéne. Há, deste ponto de vista, um evidente parentesco entre o cinema de Kenneth Anger e o de David Lynch. Em ambos, o metteur en scéne é uma espécie de xamã, de médium que busca suscitar o transe no espectador, com o objetivo de manter despertas regiões anestesiadas de seu cérebro. Isto é particularmente verdadeiro no caso das cenas de amor em Lost Highway, verdadeiras cerimônias inquietantes , e que fazem assomar não apenas os fluxos eróticos mas cósmicos. A música, tanto em Anger quanto em Lynch, desempenha também um papel fundamental. Anger aliás usou a canção Blue velvet vários anos antes de Lynch. Em Lost highway, cada trecho musical, do genial I’m deranged de Bowie a This magic moment de Lou Reed, passando pela sublime Insensatez de Antonio Carlos Jobim, sem esquecer todas as intervenções de Trent Raznor ( que já concebera a trilha sonora de Natural born killers de Oliver Stone), funciona ao mesmo tempo como um comentário da seqüência correspondente e como uma intensificação da ação que decorre. Lynch, com a cumplicidade de Badalamenti, cria assim uma verdadeira narrativa musical paralela, com seus cuts brutais e suas revoadas líricas. Assim como a música é absolutamente visual, a mise em scéne torna-se musical. Desde Blue velvet, Lynch tem a tendência a fazer durar cada vez mais as sequências, a estirá-las, a infundir-lhes uma metástase e a considerá-las como entidades autônomas que são tratadas musicalmente. Em Lost highway, esta dimensão hipnótica e musical da mise en scéne é de tal forma interna ao filme que dir-se-ia que a arte de Lynch está às vezes mais próxima de certos músicos conceituais- como Brian Eno, Tricky ou Bjork, que cria uma realidade musical fascinante por seu ultrapassamento das contradições entre tecnologia e instrumentação tradicional- que do cinema.
No ponto de encontro de todas estas funções, há o filme, realidade em si que não possui outro referente senão ele mesmo. Para compreender Lost highway, o pior lugar seria o ocupado pelo espectador-detetive ( lugar de que os policiais no filme, sempre pasmos, são os substitutos ideais), que desejaria a todo preço decifrar ou interpretar o filme através de um discurso, um saber, uma estrutura unívoca, quer esta seja analítica, policial, cinefílica, mística ou simplesmente filosófica, mas sempre exterior a este film-boîte1. Não que este filme-máquina não possa acolher toda a espécie de significações , mas apenas para eletrizá-las e fazê-las girar; é absolutamente necessário entrar no filme de Lynch como no interior de um organismo vivo, nele se abrigar, de habitá-lo e ser por ele habitado, de assombrá-lo e ser assombrado por ele. A figura do anel de Moebius, com suas duas faces que se voltam para si mesmas, evocada por Michel Chion em sua excelente monografia sobre Lynch, jamais foi tão adequada do que quando aplicada a Lost Highway. O jogo de dualidades, de ressonâncias, de ecos que constituem o próprio fundo do filme não nos diz outra coisa. Tudo é duplo em Lost highway- os personagens, as situações, os objetos-, e cada elemento só pode ser percebido em função de uma rede de correspondências próprias ao filme. O espectador é tomado em um circuito integrado, um círculo involutivo no interior do qual ele deve criar suas próprias referências. Ainda mais que em Level 5, Lost highway talvez seja este puzzle, invocado por Chris Marker, cujo desenho não remete mais a nenhum modelo, mas unicamente a si.
O circuito temporal de Lost highwayw é muito estranho. Embora a idéia da narrativa seja finalmente muito linear e suponha uma sucessão temporal cronológica, tudo se passa como se as relações entre o passado, o presente e o futuro não obedecessem mais a regras de subordinação. Sem revolucionar de maneira explícita a cronologia, Lynch torna impossível a identificação do momento. A substituição de identidade entre Fred Madison e Pete Dayton é o pivot do filme, mas sem seguida nada nos garante que o que é situado cronologicamente depois não tenha se passado antes, pois o fim do filme remete à sequência da abertura. Mais precisamente, o tempo da narrativa, em Lost highway, constitui ainda um tempo perfeitamente interno a si mesmo, cujo desenrolar obedece a regras que não tem nada em comum com as do tempo da crônica. É um tempo espacializado. Como o Homem-Mistério, o tempo possui de alguma forma o dom da ubiqüidade. Mas ele é fechado sobre si mesmo apenas em aparência, pois pode permanentemente integrar informações que o fazem mudar de direção. Neste sentido, o cineasta mais próximo de Lynch seria talvez o Bergman que, em meados dos anos 60, forjou filmes-cérebro, cuja lógica própria é a de uma máquina produtora de imagens e de um espiral de tempos internos a estas mesmas imagens. A aproximação não é fortuita, já que Lynch é um grande admirador de Bergman, a tal ponto que o rosto do Homem-Mistério em Lost Highway assemelha-se à máscara da Morte em Sétimo selo. Dir-se-ia assim que se Twin Peaks era para Lynch um equivalente possível da Hora do lobo, Lost highway é um pouco o seu Persona, por seu jogo sobre a dualidade e a dissolução do tempo e da identidade que este jogo pressupõe. No mundo anglo-saxônico, apenas Kubrick e Cronenber souberam criar cristais de tempo tão fascinantes. 2001 e Shining produziram em sua época o mesmo efeito de sideração e desorientação. Videodrome e Crash igualmente. O precursor desta estruturação do tempo é, evidentemente, Hitchcock que, com Vertigo, tinha criado uma linha temporal perfeitamente autônoma, já fundada sobre a repetição e a dualidade. Mas Vertigo, que claramente é a matriz do filme de Lynch ( que nos propõe uma versão invertida, na qual a morena é frígida e a loira explosiva), como tantos outros, permanecia, apesar de sua extraordinária potência poética, ainda ligado a uma cronologia muito tradicional. Enquanto que Lost Highway, assim como Shining antes dele, ou Crash bem recentemente, poderia ser visto como um filme-instalação, que nos contempla tanto quanto é contemplado, que nos persegue tanto quanto nós o encaramos. Neste sentido, o trabalho de Lynch é tão próximo de Hitchcock quanto de artistas contemporâneos como Bill Viola ou Gary Hill. Ou mais exatamente: ele é uma releitura de Hitchcock no tempo das instalações especulativas. . As câmeras-cassetes de vigilância em Lost highway são como naves exploradoras, sondas de imagens que criam um horizonte virtual, um pouco à maneira das instalações de Gary Hill. Em outros momentos, a utilização da multi-projeção e da superimpressão evoca diretamente a arte de Bill Viola. Lost highway é uma fita de sonhos, como a estrada perdida que vemos desfilar a toda velocidade nos créditos, mas é uma fita que teria integrado, nos tempos do vídeo e da eletrônica, os avanços e retrocessos rápidos. Assim, pode-se, a todo momento do filme, entrarmos em contato com não importa qualquer outro instante do filme. Dom de ubiqüidade, ainda e sempre...
Se o cinema de Lynch é abstrato, é à força de ser figurativo. Carregado de todas as imagens americanas, das mais artísticas- o fascínio de Lynch por Edward Hopper não é desmentido aqui- às mais triviais- a publicidade e, claro,a pornografia-, passando pela fotografia, as séries televisivas, ou ainda algumas obras fulgurantes ( A morte num beijo ou A marca da maldade, ou mesmo seus próprios filmes, Eraserhead e Blue Velvet, sem esquecer todos os outros que foram citados). No entanto, Lost highway é o contrário de um filme-citação. Longe do maneirismo ou da referência, dir-se-ia que Lynch integrou todas estas imagens em um fundo indiferenciado que faz coexistirem múltiplas espessuras, a fim de melhor fazer assomarem suas próprias figuras. A figuração, que é o grande assunto do cinema americano ( ver Mars attacks! De Tim Burton, filme que tira sua força de uma arte estritamente figurativa), toma em Lynch uma dimensão particularmente saturada. Este excesso de figuração, cujo emblema mais intenso será o personagem de Patrícia Arquette, leva à iconoclastia ( a desfiguração ou o esfacelamento), que igualmente é ultrapassada em direção a uma abstração que passa pela “descarga” de todas as figuras, e se aparenta muito nitidamente ao processo cibernético de compressão de dados. Tendo assim realizado sua própria revolução, Lost Highway pode desta maneira flutuar no éter, aberto a todas as virtualidades, máquina de pensamento que marca a espantosa irrupção de um grande cinema figurativo-abstrato.

Thierry Jousse
Cahiers du Cinéma, número 511
Tradução: Luiz Soares Júnior.
1. Film boîte: Filme caixa, fechado em si mesmo, tendo a si mesmo como referente.

O esplendor na relva. Sobre Nouvelle Vague

Nouvelle vague ou o retorno de Godard sobre os espaços de uma história. Delon e seu duplo em busca de sua identidade. Eu sou um Outro. Em Cannes e em qualquer outro lugar, a natureza, o amor, o dinheiro, o encontro, o poder. Elle est retrouvée- Quoi?- L’éternité.

Nouvelle vague. A ambição de Godard, confessada desde a primeira frase de Nouvelle vague ( ou Vague Nouvelle) pela voz-off de Alain Delon, consiste hoje em escrever uma narrativa. O que pressupõe uma história, uma trajetória, um modo de narração. Diz-se repetidamente que Godard era incapaz de contar uma história, de manter a distância da narrativa para se dar ao luxo de maravilhar-se. No entanto, talvez pela primeira vez, ele consegue ganhar a aposta da história. O enunciado é aliás bastante simples, límpido como a água do lago que Godard sente prazer em filmar. Basta reportarmo-nos ao texto de apresentação que Godard se deu ao trabalho de escrever ( Cahiers, 431-432). Ao termo de uma dupla prova, um homem e uma mulher se reconhecem. É uma história de duplos, de amor, de dinheiro, de ressurreição.
A verdadeira novidade de Nouvelle vague está no tempo. Tradicionalmente, o tempo de um filme de Godard é de natureza intensiva, ou seja, jamais está ligado ao desenrolar da fita da película durante a duração da projeção. É uma espécie de presente perpétuo que não acumula uma energia cronológica, que é indivisível em passado, presente e futuro. Pra usar uma metáfora matemática, trata-se de um tempo expresso “compreensivamente” ( en compréhenson), ou seja, de um único jorro, em uma única vez, e não em extensão, como o exigem as leis da narrativa; um tempo puramente espacial, que não remete à “curva” ( courbe) , à parábola de uma história preexistente ao filme. A inverso disto ou quase, Nouvelle vague nos dá a sensação de ser o primeiro filme de Godard escrito, narrado no passado simples, o tempo da narrativa. Faulkner e Chandler, abundantemente citados, são espécies de arquétipos ou modelos, os últimos grandes escritores do esplendor romanesco. Chandler nos chama a atenção, por sua presença virtual, para o fato de que toda história é policial, e que ela contém um mistério em si mesma. Quanto às frases de Faulkner, com freqüência fazem alusões ao ritmo das estações: “o versão estava desgovernado”, e sobretudo “Todos eles perfilados sobre o fundo do verde luxuriante do verão,e o abrasamento real do outono e a ruína do inverno, antes que a primavera florisse novamente” ( frase já citada em Grandeza e decadência de um pequeno comércio de cinema). É sem dúvida inspirado por esta referência que depois do primeiro afogamento, a primeira cisão da narrativa, Godard filma o desenrolar das estações, a pura e simples passagem do tempo. Alguns planos da Natureza- o sol, a chuva, o vento- bastam-lhe amplamente. Mas estes breves instantes de suspensão criam um verdadeiro corte na narrativa. E, ainda à maneira de Faulkner, Godard pode retomar a segunda onda ( vague) em curso ( Delon/Lennox já retornou, dois dias depois), e entrar por refração no segundo tempo da narrativa para melhor acompanhar a sua história. Em suma, reina em Nouvelle vague uma espécie de fatalidade trágica que não havíamos sentido desde, digamos, Pierrot le fou. Não é por nada. De onde vem esta história de um homem que retorna? Difícil de dizer. Sem dúvida, não diretamente da literatura, como a de Prénom Carmen, mesmo se pensarmos nas grande narrativas mitológicas de retorno à pátria, como a de Ulisses; da Bíblia tampouco, como em Je vous salue Marie, mesmo se evidentemente trata-se aqui de ressurreição e que não possamos nos impedir de entrever no personagem de Delon/Lennox uma figura crística. Mais simplesmente, creio que esta história vem do passado. Ela remonta lentamente à superfície para chegar até nós. Do passado do próprio Godard, que não hesita a se referir diretamente ao mundo de sua infância, mundo onde, como aqui, o dinheiro reinava sem divisões; mas também de um passado mais indefinível, atravessado por memórias do cinema.
A imagem se encontra no passado, portanto. É este mesmo o tema do filme. É a história de uma repetição, de uma imagem que volta, de uma imagem enterrada sob uma outra. A escolha de Delon é aliás intimamente ligada às reminiscências, às harmonias que ele contém e sugere. Durante o afogamento, é O sol por testemunha que ressurge e, face ao personagem de Roger Lennox ( o do primeiro tempo), não podemos deixar de pensar no garagista atordoado de Notre histoire ( Bertrand Blier), um filme que Godard confessa amar bastante. O sentimento ambivalente do já-vivido domina Nouvelle vague. “A lembrança é o único paraíso do qual não podemos ser expulsos. A lembrança é o único inferno ao qual estamos condenados”, diz uma voz um tanto fúnebre. Tudo é duplo como Delon e seu fantasma, que assombram a tela. A imagem é forçosamente virtual e alojada em uma outra imagem. Aliás, a idéia de uma segunda chance, da “onda” ( vague) que retorna e que seleciona não nos deixa de lembrar do roteiro de Vertigo. Um pouco à maneira de Scottie/Stewart, Alain Delon/Lennox busca fazer reviver uma imagem atualizando-a, tentando modificar-lhe o fim e a destinação. Mas em Hitchcock, o eterno retorno conduzia à morte, enquanto que em Godard, ele atinge, pelo contrágio, o renascimento. Os dados são relançados. O tempo sai de sua garagem para partir novamente, sobre novos trilhos. Foi dito aqui e ali que Nouvelle vague era um filme que exalava a tristeza e a melancolia. Se há um poeta elegíaco em Godard, em particular no simples sentimento da fuga do tempo, eu creio no entanto que Nouvelle vague é o filme do renascimento, da ressurreição da imagem.
Como todo filme de Godard, Nouvelle vague propõe uma interrogação sobre a imagem. Qual o seu status? Sua natureza? Qual o seu lugar? Em uma curta seqüência, Godard, pedagógico, nos propõe um exemplo. Uma imagem: A neve sobre a água= o silêncio sobre o silêncio. Este instantâneo joga ao menos sobre dois níveis. Primeiro enquanto definição da imagem e de sua manifestação. A imagem é, em Nouvelle vague, o que quer escapar à palavra, o que se situa para aquém do ato de nomeação, o que advém em um movimento de suspensão que precede ao nome ( era já este o sentido de Prénom Carmen). Res non verba, nos diz um intertítulo latino do filme- as coisas, não as palavras. “A imagem é autista. Eu quero dizer que ela não fala. A imagem não diz nada”, dizia Fernand Deligny ( Cahiers, número 428). Estas palavras do psiquiatra-filósofo, Godard poderia fazer suas. Pois a imagem em Nouvelle vague luta para existir mineral ou vegetativamente, como em um movimento de retorno às origens. Salvo que a origem aqui não se situa no antes, mas no depois, reconquistada pelo cinema hoje. Os planos de árvores ou cavalos, assim como os de Delon ou Domiziana Giordano, estão lá ontologicamente. Não significam, eles se impõem.
O segundo nível é aquele da metáfora, ou mais exatamente da alegoria. Mas Godard opera uma inversão da alegoria, enquanto figura literária. Não se trata da viagem do abstrato em direção ao concreto, para a encarnação, o sentido tradicional da imagem de que restavam, sem dúvida, traços nos equivalentes corpos-natureza de Je vous salue Marie; aqui, trata-se do contrário, de ir do concreto para o abstrato. A neve sobre a água produz o silêncio sobre o silêncio. A força de Nouvelle vague consiste em exprimir, através da imagem de existências, puras essências. O amor, o dinheiro, o encontro, a natureza, o poder. A imagem, seu segredo, é o segredo da própria essência. A árvore, diante da qual se encontram a condessa Torlato-Favrini e Roger Lennox, torna-se imediatamente a árvore do conhecimento (aquele diante do qual adquirimos conhecimento, dixit Godard em um raccourci cujo segredo ele detém).
Quanto à esfera do dinheiro, é a que detém o papel mais explícito. Todos estes personagens que gravitam em volutas e arabescos em torno do núcleo central do casal e da natureza não exprimem nada além da natureza abstrata do poder econômico. Este mundo das altas finanças, este concentrado da grande burguesia européia desempenha provavelmente aí um papel duplo. Não podemos nos impedir de ver, uma vez mais, a figuração literal do dinheiro que foi usado para fazer o filme. Contraditoriamente, pode-se dizer que o filme existe ao mesmo tempo graças ao dinheiro e contra o dinheiro, em um movimento simultâneo de corrupção e de construção. Mas a economia que preside à história tornou-se puramente abstrata. O dinheiro tornou-se invisível, não é nada além de um signo, e a economia nada além de linguagem. Não há mais valor de uso, mas apenas valor de troca em um movimento de pura circulação não figurativa.
A alegoria invertida é um deslocamento. E o deslocamento, sob a forma de um travelling lateral ou horizontal recorrentes, é a figura-mãe de Nouvelle vague, a que estrutura o filme à maneira de um leitmotiv ou de um refrão. Para parafrasear a frase de Rivarol, citada no filme, “Pois as paixões nos dilaceram, mas a sintaxe de Godard ( e do cinema) é incorruptível”. O que nos garante este instante de pura felicidade onde, em um duplo travelling invertido, Godard nos dá novamente uma definição instantânea do cinema. Luzes que se apagam e que se acendem. Positivo e negativo. O cinema como Noite Transfigurada. E é ainda o travelling que transmite o sentimento aquático da fluidez, o movimento do fluxo e do refluxo, da onda que vai e retorna. É provavelmente o que dá a Nouvelle vague seu caráter apaziguado, quase clássico, em todos os casos profundamente decantado, ao contrário de Soigne ta droite, filme em crise que expõe sobre a tela a profunda derrisão da imagem e sua incapacidade a existir ainda nos dias de hoje. Parece-me que Nouvelle vague inaugura um período de verdadeira maturidade, ao mesmo tempo em que assinala um novo começo na obra de Godard. Eis aí a segunda chance.


Thierry Jousse
Cahiers du Cinéma, número 433, junho 1990.

Tradução: Luiz Soares Júnior.

sábado, 17 de abril de 2010

Feuillade e seu duplo


-->



Vemos imediatamente o que liga Judex- que se inscreve naturalmente no mundo excessivamente reservado de Franju- à continuidade de uma obra de que começamos a conhecer as referências e os pontos de apoio, como este bestiário favorito de pombas e cães, estes malefícios noturnos e calmarias diurnas ( depois, o contrário), ou ainda esta criatura mediúnica assumida por Edith Scob desde La téte contre les murs, de filme em filme. Estabeleçamos antes que se trata em Judex do primeiro Franju “em repouso”( passado este Pleins feux, irrealizado), digamos, de reconciliação. É fácil constatar que toda sua obra gravita e se organiza a partir de duas linhas de força essenciais, igualmente líricas, mas uma corresponde a um impulso de insurreição, denunciador( Le Sang, Hotel, La tête, Thérèse), a outra a um movimento de nostalgia e de apaziguamento ( Le Grand Méliès), a primeira veia ligando-se à representação de um trágico-documentário ou transposto- mas presente, a outra procedendo antes de um olhar menos crispado que tenta unificar , por intermédio assumido da arte ou de uma reflexão sobre a arte, o passado ao presente. Em comum, uma atenção segura no sentido de preservar e enriquecer uma eficácia didática de observação pela contribuição de uma poética pessoal que refere, ao fim das contas, o lirismo da criação ao próprio movimento desta criação.
Nesta ordem de idéias, Judex parece uma variação nova do fundador da Cinemateca Francesa sobre o nascimento do cinema, uma meditação “romanceada” sobre Feuillade, completando a meditação documentária sobre Méliès; seja porque, em ambos os criadores, face a uma avant-garde que deve sua sobrevivência unicamente à História, se conciliavam as aspirações da arte popular e os germes do cinema moderno, “Le Grand Feuillade”, depois de “Le Grand Méliès”, constituíam ao mesmo tempo homenagem, análise e crítica que são apenas três formas de amor: a exaltação do realismo onírico do primeiro “prova” o cinema contra o onirismo realista do segundo ( e vice-versa), como a ficção persegue a realidade, como as atualidades reconstituídas do mágico Méliès julgavam e fundavam os marcos da autenticidade.
A atividade desacreditada do “remake” encontra portanto aqui uma justificação pouco comum. “É preciso recompensar os plagiadores”, repete Jean Renoir, sempre razoável; não que esta arte possa ser reduzida aos parâmetros da cópia e da imitação, pois nos encontramos justamente nos antípodas da fraude e da facilidade. Mas seria divertido imaginar o elogio sistemático da retomada ( reprise) , do elogio ou, segundo o caso, da traição, da apropriação, da contradição. Que um Logan “desvie” Pagnol em proveito próprio só depende de uma substituição, de qualquer forma legítima, de folclore. Mas entre A cadela e Scarlet Street, ou A besta humana e Human desire ( ou ainda entre The diary of a chambermaid e Le journal d’une femme de chambre), é com o decalque impossível, com o confronto entre dois universos inassimiláveis ( e que, no entanto, se roçam pela graça de um tema em comum, de um sub-reptício “a partir de”) que temos de lidar, cada um dando a mais justa medida , à sua maneira, da irredutível do outro; o jogo da restrição e da liberdade exposto à pureza mais imediatamente visível, mais reconhecível de seu próprio mecanismo. Mas Franju-Feuillade é ainda outra coisa. Seríamos tentados a dizer: como Picasso impondo a Courbet ou a Velásquez um imperioso renascimento, soberbo ( mesmo que às custas de uma violação), renascimento que os destina a uma modernidade conquistada pela segunda vez.
Violação e renascimento, mas também luta singular entre dois saberes totalitários, um jogo de “quem perde ganha” invertido sem cessar que confirma uma certeza: os grandes pintores foram ( são ainda) os primeiros depositários de suas construções teóricas. Eles são raramente inocentes- ou o são em demasia, mas então se distanciam da pintura para reencontrá-la em seu além ( Van Gogh) ou em seu aquém ( Rousseau). A fusão contemporânea entre o saber e a inocência que assombra o artista se oculta em algum lugar no secreto território das origens. Em Giotto, em Monteverdi. Com Feuillade também.
Retorno às fontes, mas também através daquilo pelo qual as fontes permanecem vivas: presentes. Compreende-se que um único espírito está em julgamento aqui ( un esprit seul est en cause), e que Franju tenha sonhado com o Fantômas, e que a Judex seja apenas reservado o anedótico. O essencial, e o que intensifica a dimensão da “peregrinação” em direção às origens é a posição privilegiada de Feuillade, que François Lacassin chama “o terceiro homem” ( depois de Lumière e Méliès), ao mesmo tempo o último dos primitivos e o primeiro dos modernos. Judex, em oposição a tantos filmes com referências ancoradas na vida ou na literatura, opõe um cinema referenciado a si mesmo: às suas origens, a seus segredos ( nós o vimos), mas origens e segredos que podem ser redescobertos menos através de hipotéticos mistérios de fabricação que pela superposição, como que por surpresa, procurando esta inocência tão dificilmente capturável, pois sempre comprometida pelos desvios impostos pela astúcia ou pelo saber. Unicamente neste estágio encontra seu sentido esta reconciliação de que falamos mais acima, já que a démarche de Franju não conseguiria ter evitado as armadilhas da retórica se este não tivesse imposto à busca pelo cinema perdido a uma outra, menos espetacular, mais apagada: o reencontro de uma infância que pressentimos ligada aos sortilégios deste cinema. E da mesma forma com que Breton pode afirmar que é preciso abandonar sua “infância” para saborear a de Rimbaud, foi preciso que o homem-Franju se desse conta com precisão de emoções distantes no tempo para oferecer-lhes uma outra espécie de metamorfoses.
Pois o que separa o Judex de 1916 do Judex de 1963 é, evidentemente, a distância de uma mitologia “atual” e de seu reflexo historicizado, ou aquilo pelo qual a segunda se esforça de reproduzir a primeira em seu duplo movimento de convenção e de convicção: aqui emerge uma forma ( nostálgica) de crítica, e em primeiro lugar nas inevitáveis modificações do roteiro inicial, desnudado de suas motivações psicológicas e de um grande número de meandros explicativos. Retomando o velho mestre à sua conta e risco, Franju vai se sobrepor ao espetáculo , e se abandonar a uma ironia de bom grado solene. À simples cópia do estilo, ele reserva o destino de um “como se” cúmplice mas um pouco distante, as entidades morais sendo abolidas sob um olhar poético, unitário, em uma celebração plástica das aparências, espionadas, negadas, ressuscitadas, ou seja, em um Parecer que não é mais da ordem do embelezamento, mas a própria estrutura do filme; a redução da narrativa se efetua ao nível do signo ( o plano como aquilo que o habita), mas fora de todo simbolismo, de toda metafísica; o signo existe unicamente em razão de si, mas totalmente.

Primeiro nível: a constatação, o apelo ao resgate. Com Feuillade na cabeça, evidentemente. No entanto, ainda mais Les vampires que Judex, realizado por questões de comodidade. Vampires, serial altamente estimulante, evocado por blusas negras ou pelo ritmo de uma certa java. Também temos Fantômes, que nos é engenhosamente transferido aqui na figura de vizinhos cúmplices ( Diana Monti-Francine Bergé). Temos ainda, para além de Feuillade, o acolhimento de todos os ancestrais; de Gasnier, para irritar os fantasmas de Monsieur Gaumont, e de outros seriais esquecidos, além de Lang: vejamos Judex, sua organização diabólica, seus homens de negro e seus mil olhos que nos perseguem, embora as razões sejam diferentes, a partir de Mabuse ( ele tinha direito, segundo Franju, “como precursor de uma moral autêntica, à estima revolucionária”). Ou mesmo- por que não?-, de Griffith: em filigrana da candura de Edith Scob, sempre ofertada à violência, aflora às vezes a vulnerabilidade dos sorrisos constrangidos de Lillian Gish.

Desde a abertura da íris- primeira referência- sobre a inquietude do banqueiro Favraux, este olho mágico que prefigura outros olhos, este olhar indiscreto e tenaz que vai encadear a narrativa na mais ínfima de suas articulações estabelece seu poder sobre a célula dramática originária, o plano, que tem aqui todas as suas virtudes restabelecidas. O plano que, para Franju, já sabemos, é um vidro que se deve preencher- herança expressionista, enquanto que, para nós”veristas”, ele se preenche muito bem sozinho: se este aparente anacronismo confessa desde logo um pertencimento a um cinema dos tempos fortes e da exuberância imagética, é porque o tema assim o exigia. Que importa então ( ou antes: tanto melhor!) que Chaning Pollock seja um ator “inexpressivo”?, já que é à sua capa negra de justiceiro, à sua destreza ou imobilidade no cadre que são confiadas a função de exprimir o que sua máscara impassível recusa. Mas se as silhuetas que assombram o filme participam de um mundo de sentimentos imediatamente inteligíveis, as motivações convencionais dos personagens se prolongam numa espécie de “profundidade de campo”sugerida que é a matéria de seus próprios sonhos: seria injusto que o imaginário permanecesse unicamente reservado ao autor e não fosse, vez ou outra, corromper a docilidade de suas criaturas. É paradoxalmente por este estratagema ( ruse) que Franju, em um segundo estágio, recupera sua criação e restitui a Judex, depois de tê-lo reconciliado com o cinema de seus pares- de onde este veio-, um lugar no horizonte de suas obras. Eu quero falar aqui de Edith Scob, cujo papel consiste justamente em relacionar a sucessão casual das partes a uma coerência lateral, a um totalmente outro. Tão necessária quanto o fora Marlene para Sternberg ( embora mais discretamente), ela tem por missão, desde sua entrada furtiva na igreja em La téte contre les murs, criar unicamente por sua presença um frisson que não tem nada de cênico, e estabelecer uma continuidade irreal que nenhuma anedota conseguiria perturbar: a própria essência da poética de Franju ( seu emblema), reconduzida de ressurreição em ressurreição, morta improvável, vivente incerta, móvel ideal a diferir os enigmas sempre até a próxima vez.
A nudez final do plano da praia absorve o barroquismo dos décors anteriores em uma nova expectativa: a última pomba se desgarra da mão do mágico, sem dúvida em direção a uma outra noite, onde ela encontrará sua confidente favorita, prometida aos ultrajes dos próximos malefícios.
Jean-André Fieschi.
Tradução: Luiz Soares Júnior.

terça-feira, 9 de março de 2010

Le plus-de-voir História(s) do cinema por Alain Badiou

De que se trata? Falando de seu afresco, que ele chama de emissões, e que nomeamos como o “filme”, Godard monta a ficção de um arquivista, evoca Foucault, situa seu empreendimento entre História e Idéia. Mas esta não é uma intenção derivada, uma espécie de estrato suplementar, que se poderia integrar a tudo o que se profere a partir, ou em torno, do homem com cigarro na boca e iluminado por uma fluorescente ( grande artista-sábio, sob o ícone de Groucho Marx), homem este cujo retorno, com o clicar das teclas de sua máquina de escrever, assinala , no “filme”, que todo este terror visual intitulado História (s) do Cinema é a biografia intelectual de um único homem?

Ou ainda: a definição abstrata do cinema constitui o cruzamento entre uma imagem-movimento e um real. É por meio deste cruzamento que o “filme” edifica sua matéria, pelos artifícios maiores da montagem virtuose, da superposição de imagens, do intervalo brusco entre o audível e o visível, do murmúrio que, para além das máximas, não cessa de se fazer ouvir, como se toda verdade tivesse de ser laboriosamente extirpada de um ruído de fundo compósito? Mas grandes conglomerados maciços textuais, a imagem que pára sobre o rosto angelical de uma cartomante, tudo isto é um obstáculo a esta idéia de um constante descruzamento e recruzamento ( dobrar e redobrar, diria Deleuze) que só teria por objetivo ruminar a inalcançável justiça das imagens, ou sua notória injustiça. Ao invés disso, vemos surgir a cesura entre um artista exageradamente solitário e este enorme buraco negro do século que teve por nome “Segunda Guerra Mundial”.
Ou ainda: se disse que o tema de Godard era a genealogia da potência do cinema. Mas da mesma forma não é a sua “impotência” que está em questão? O impossível a se filmar assombra Godard desde sempre; a fábrica, o sexo, o extermínio. De maneira que este imenso palimpsesto, o “filme”, visaria a identificar, através dos recursos acumulados da super-potência ( podemos fazer, deste conglomerado de imagens e de sons, o que quisermos), o ponto de impotência que é, ao fim e ao cabo, todo o real do cinema, e a razão última de sua dissipação. Daí também o status ambíguo dos livros, que no “filme” Godard tira de sua biblioteca, cujos títulos ele cita, ou fragmentos. Ao mesmo tempo o conglomerado da potência ( ou poder) incorpora os livros, os manobra, os inscreve em sua polifonia, e por aqui e ali subordina sua força à força de que o cinema é capaz- tanto por sua amplidão de recepção ( no cinema, conta-se por milhões, no livro por milhares) quanto pela gravidade real da montagem das ficções ( l’Espoir, o filme, contra l’Espoir, o livro 1); ao mesmo tempo, ele sugere que os livros permanecem “em reserva”, que sua visibilidade é apenas aparente, e que esta disponibilidade em retração do escrito talvez monte, em relação ao real, uma guarda mais segura do que a garantida pelas imagens.

Ou ainda: uma totalização sinfônica. Uma “restituição integral do passado”, não pelos meios de sua citação ou narração, mas por aqueles, combinados, de uma desarticulação temática ( como o cinema cruza o caminho da guerra, do amor, a beleza das mulheres, as revoluções, os massacres, as mitologias, as nações...?) e de uma contração local, que reúne em um único ponto todas as interpretações disponíveis. Daí um procedimento de composição que se poderia com justiça comparar ao de Mallarmé em Un coup de dés. Alguns enunciados maiores, com freqüência apresentados na tela em letras maiúsculas ( HISTÓRIAS DO CINEMA, FATAL BELEZA, VOCÊS NÃO VIRAM NADA, UMA ONDA NOVA, etc), induzem a subtextos, escoltados por um rumor quase inaudível, ou metamorfoseados por motivos musicais, enquanto que as citações fílmicas são tratadas como suportes de variações infinitas, por coloração, câmera lenta, superposições de imagens, retrocedimento de imagens ( marche en arrière), cortes, incisões disparatadas, recorrências, delimitações, círculos, mutilações visíveis. Aliás, construções secundárias funcionam não “abaixo”dos enunciados cruciais, mas ao lado, como fortificações nuas. Isto se dá particularmente no caso dos títulos dos filmes, que tecem pouco a pouco, à parte de todo o resto, a lista nominal, impávida, inalterável, do que permanece.
Mas podemos também rever o “filme” a partir do que constitui exceção a este tratamento emaranhado, ou o escalonamento simultâneo do múltiplo visível e audível conduzido à superfície, como o oceano faz com o barco; não apenas a organização semântica do “filme”, mas o conjunto das associações, virtualmente infinitas, que um pensamento a todo instante móbil e vigilante descobre na menor afirmação, e que simbolizam, no próprio nível dos enunciados fundamentais, as tentativas combinatórias sobre as letras ou as palavras ( assim, a passagem de NOUVELLE VAGUE a UNE VAGUE NOUVELLE, ou a injunção subjetiva TOI tirada da palavra HIS( TOI) RE, sem contar as brincadeiras do tipo SI JE NE MABUSE, e vários outros anagramas). Exceção: o doce terror de uma seqüência de O mensageiro do diabo 2, a das crianças na barca, que deixam repousar sobre o rio noturno sem alteração nem corte. Ou o retorno calculado da seqüência da metralhadora em Esperança. Ou determinado momento de palavra nua carregado por um rosto. Ou determinada insistência musical, espécie de graça de uma lentidão advinda ao tohu-bohu do visível. Ou mesmo a inserção fugaz de uma cena pornográfica, cuja feiúra brutal se distingue como uma mancha sobre a seda. E nos dizemos então que a extrema percuciência da montagem, que faz do “filme” o equivalente de uma conversação multiforme agenciada por um Deus, só está lá para que sejamos levados a desejar sua suspensão, como quando buscamos no mundo devastado os signos esparsos, e quase imperceptíveis, de uma paz superior.
Ou ainda: sustentar o desafio desta outra arte do visível, a pintura. São incontáveis os momentos no “filme” em que um rosto da Renascença vem espraiar sua cor nas margens de uma seqüência, ou detrás de um fotograma em preto e branco. E aqui trata-se da mesma ambigüidade relacionada ao livro. É preciso compreender- o que é sempre designado pela abertura da imagem cinematográfica em direção ao esplendor pictórico, como se este lhe fosse subjacente-, que o cinema continua a refletir, nisso fiel à pintura, as bodas conflituosas entre a selvageria da história e a evidência corporal do amor? Uma outra técnica mostra-se mais incerta, a que organiza o entrechoque extremamente rápido, quase doloroso, entre uma imagem de cinema e um fragmento de pintura. Poder-se-ia quase ver que o cinema, ao invés do herdeiro, seria antes o suplício da pintura. A expressão de Malraux, “a Moeda do Absoluto”, é um dos sintagmas cruciais do “filme”. Mas às vezes nos perguntamos se “moeda”, em se tratando do cinema, não é um termo tão mais importante que “Absoluto”, a ponto de que, para termos um equivalente em película a qualquer Adão e Eva de Michelangelo, seria necessária a poeira acumulada por todos os rostos amantes de toda a breve história do cinema.
Ou ainda: a melancolia. Ela seria o verdadeiro tema de todo o “filme”. Sabemos em demasia que o estilo de Godard, ao encurralar os outros e a si mesmo contra o muro, obrigando-os à confissão de suas doentias incertezas, captando o fluxo mortal dos atos, ou exibindo- no contraste entre sentenças definitivas ( seu lado moralista francês, Chamfort, La Rochefoucauld) e a pobreza tocada pela graça da paisagem plana, ou da mesa de ferro branco, o pouco de fé que ele se pode reservar a seus próprios impulsos- é materialmente melancólico. No "filme", esta melancolia é complexa. O cinema é seu suporte privilegiado, aquele que apenas em aparência é a arte de seu tempo.Um enunciado do "filme" é: " O cinema, arte do século 19, carregou o século 20" ( a porté le 20e). Melancolia advinda da constatação de que sempre seja tarde demais, até porque o cinema, sem dúvida, está morto, como o sugere a inscrição, quase terminal: " ERA O CINEMA". O "filme" diz também: "Podemos fazer tudo, com exceção da história do que fazemos". De maneira que esta "história(s) do cinema" , ou é impossível, ou atesta que aquilo de que é testemunha, o "fazer" do cinema, é de hoje em diante forclos ( barrado, interdito). Godard, testemunha melancólica de uma certa abolição de seu próprio "fazer artístico"? Contribuiria para isto que a "vague nouvelle" ( nova onda, nova moda), cujo terno emblema é a imagem de Truffaut, seja designada como uma espécie de "paraíso perdido" onde, guiados por Langlois ( ou seja, já guiados pelas histórias do cinema), os jovens arrancavam uma arte à sua lenda acadêmica mortífera para expô-la às intempéries do "lado de Fora" ( ressources du Dehors).
Mas também este paraíso, a ser visado segundo o monumento real da História, estava envenenado, diz-nos Godard, pois pleno, até o limite de suas bordas, das “ilusões perdidas”, da dor das revoluções, o obscuro comunismo, e finalmente o misto irrepresentável ( ao qual Godard faz, em meu ponto de vista, demasiadas concessões à la mode) dos tiranos simétricos, Hitler e Stalin. De maneira que a melancolia se volta contra nós. Pois no poder de exprimir o que foi abolido, na abertura polifônica do dossier completo do que se manteve interdito, no zelo empregado em complicar até o infinito ( estilo barroco, à la Leibniz, as mônadas do cinema) as “dobras e rebordos” da imagem e do real, na desmistificação do que toda impostura carrega consigo de verdade, o artista desvela uma outra época, mesmo que ele não saiba de que época se trata. Um pouco como na caso da saturação retrospectiva, igualmente marcada por um inimitável tom melancólico, das sinfonias de Mahler, opera sem o saber a redefinição de Schoenberg. O rosto fechado de Godard sob a lâmpada, que não é sem relação à máscara de Mahler, é o rosto de um arqueólogo virtuose e triste? Ou aquele de um homem que habita, com toda a sisudez puritana da Suíça, a mais essencial coragem, a coragem de vencer a melancolia com suas próprias armas, investindo-a com o tom e o estilo de uma promessa criptografada?
Ou ainda: o platonismo anárquico de Godard. É marcante que “no filme” toda imagem seja o índex possível de uma outra imagem, e ao mesmo tempo o estofo de vários textos simultâneos. A imagem jamais se refere a um referente, todo o mimetismo é excluído. A imagem é antes a rachadura entre ela mesma e todo o povo que habita no visível e no dizer. O “filme” é o movimento destas “rachaduras” ( écarts) superpostas, entrelaçadas. O cinema tem por vocação, pronunciar-se, ligar, pôr em relação, o que usualmente não mantém relação, precisamente pois ao cinema é dado aproximar, engendrar consonâncias, tramar polifonicamente, pelo próprio meio de uma separação ( écart). Assim, os Judeus e os Árabes ( ISRAEL E ISMAEL, intitula “o filme”), ou Judeus e Alemães em uma única imagem, separada de si mesma: dois jovens soldados alemães carregam o cadáver de um deportado. Mas então, a questão se torna: qual é a essência da imagem, se ela não reproduz nada, mas se distancia sinteticamente de todas as outras, em proveito de uma invisível justiça do visível? No fundo, a organização serial do “filme”, sua esmagadora sutileza no detalhe, sua mobilidade tática, compõem os meios de uma retomada da essência, a respeito da qual alguns planos suspensos ( uma mancha azul no negro, um rosto de mulher lentamente deslocado, uma casa cujas janelas se fecham...) destilam o símbolo, e cujos constantes recursos às inscrições abstratas são como os sinais indicativos, ou os resumos que um Sócrates convertido à essencialidade da imagem forneceria a seus jovens auditores, a quem tanta aparente sofística confundem.
Obra-prima, sim, no sentido artesanal do termo: realizada e completa, solitária, vagamente maníaca, tramando diversas perspectivas, sem hierarquia estabelecida.
Objeções? Sim, claro. Um certo peso, uma seriedade excessiva, nas bordas da ênfase, bem assinalada no “filme” pela voz claudeliana de Alain Cuny. O cinema é convocado diante do tribunal de sua responsabilidade histórica e de sua fatalidade artística. Isto significa render-lhe justiça? Esta arte impura é a arte do sábado à noite, da família que sai pra se divertir, dos adolescentes, dos gatos que se aninham sobre os muros. O cinema oscila desde sempre entre o burlesco de cabaret e o titânico da feira. Ao mesmo tempo o palhaço e o “homem mais forte do mundo”. Não seria necessário lhe dar o crédito de que ele é, sobretudo, inocente? Como tudo o que fascina e reúne, ele foi propagandista, é claro,e publicitário e estúpido. E fugidiamente incapaz, por uma espécie de depuração interna de seus materiais indignos, da mais elevada destinação. Seria preciso, em relação ao “filme”, onde como sempre em Godard se impõe a questão deletéria da Salvação- o amor contra o Estado, a responsabilidade do visível contra os cães exaustos da “comunicação”, o texto duro contra a imagem deliqüescente, etc...- uma contra-história rarefeita, onde se veria que não é preciso fazer, sobre o cinema, tantas história(s). Tão grande quanto seja, e tão imbricado em nossa época, ele se enraíza sempre, esta arte da “comunhão” geral ( rassemblement general), no gosto compartilhado por todas as classes, de todas as idades e de todas as ações, pelo espetáculo de um homem poderoso que um vagabundo asperge de estrume, de um imenso navio que flutua, de um monstro horroroso surgido das entranhas da terra, do Bom que, em plena luz do Sol, depois de tantos desapontamentos, enfim mata o Mau, do policial-detetive que agarra o ladrão-mafioso, dos estranhos costumes dos estrangeiros, e de cavalos na planície, e de guerreiros fraternais, e do drama sentimental, e da mulher nua estilhaçada pelo Amor. Os maiores artistas desta arte, Chaplin, ou Murnau, apenas corresponderam 3 a esta origem vulgar, sem jamais- muito pelo contrário- tentar aboli-la.
Se o cinema é idéia, visitação casual da idéia, é no sentido em que o velho Parmênides, em Platão, exige do jovem Sócrates que ele admita, ao lado do Bem, do Justo, do Verdadeiro, das idéias absolutamente ideais, algumas outras menos convencionais: a idéia do Cabelo, ou a da Lama.
Alain Badiou, ( Le plus-de-voir) Art press, O século de Jean-Luc Godard, novembro 1998
Tradução: Luiz Soares Júnior.

Notas:

1. L’Espoir ( A esperança), romance de André Malraux, aparecido em 1937, que evoca as primeiras lutas da guerra civil espanhola, onde Malraux foi chefe de esquadrilha da aviação estrangeira que foi para a Espanha, a fim de lutar pelo regime republicano. Esperança foi filmado por Malraux, com o apoio do governo republicano; a filmagem, começada em Barcelona em 1938, foi interrompida pelo avanço das tropas franquistas do General Yague. Malraux só terminou o filme meses mais tarde, nos estúdios de Joinville em Paris, intitulado então Sierra de Teruel. Apenas depois da Libertação o filme, chamado finalmente A esperança, foi lançado na França.
2. Primeiro e último filme realizado por Charles Laughton em 1957.
3. No original, relever: assinalar, enfatizar, ou fazer jus a.

Jaime, Antonio Reis. Por Jean Louis Schefer

Em 1973, Antonio Reis consagra um filme à obra de desenhista de um camponês, Jaime Fernandes, rodado nos locais de seu isolamento psiquiátrico. Em primeiro lugar, sou atraído pela sutileza do propos, enfim distanciado desta odiosa apologia da loucura como fonte ou causa do talento, cujo modelo tem conhecido, de Artaud a Rodez, irresponsáveis e desastrosos elogios. Talvez consista nisto toda a dureza poética do filme: é um poema do sofrimento, da nitidez ( netteté) da solidão.

Trata-se de um filme sobre uma obra, sobre suas condições, sua incompreensível solidão? Sobre um mundo distante, a alma exilada que ronda em torno de um hospital construído como uma arena de touros; o detalhe da água, da pedra, da vegetação, as linhas das colinas que fecham este circo, onde todas as coisas forjam uma fortaleza de solidão?

Documento extremamente singular, catálogo, comentário da obra de desenho de Jaime. Mas do que exatamente se trata, e porque chamar isto de um filme? Como se desde o jato de água animado da fonte arredondada, centro extraordinariamente deslocado, como um signo de luxo ou de piedade neste hospital rude, pobre, expondo brutalmente a falta de dinheiro, a ausência de linguagem, de intimidade, de comunidade; como se todas as coisas fossem postas à distância deste espelho de água e do balbucio desta fonte. Se refletirmos bem, esta que jorra, recortada, retomando desesperadamente sua coluna de influxo é aqui a única imagem da vida, e a única palavra que jorra de um corpo. Aprisionada em seu espelho redondo, não está ao alcance da mão, frágil, intocável, perpétua e dura; ela fala, mas é como a haste líquida postada no centro desta arena trágica.
Trágica? Por que este rigor, esta inteligência sensível e implacável do que é uma coisa e do que é um homem feito coisa, ou seja, privado de todo uso de si mesmo e dos outros - dos homens ancorados, por exemplo, como galinhas sobre um poleiro de madeira, ao longo dos muros-? Por que Antonio Reis, que maneja como nenhum outro pintor hoje ao próximo e ao distante, a sombra e a luz ( e até mesmo num quarto de hospital, o encontro casual de um guarda-chuva e de uma máquina de costura), por que e em nome de que signo de desesperança e de vaidade do movimento e das aparências, por que ele nos mostra a água? Trata-se de uma coisa que, tal como este coração gélido e este centro líquido através do qual o Sigismundo de Calderón, aprisionado em sua torre, transforma na metáfora de seu sofrimento e de seu desespero por não ser adorável?

O que significa então este mundo percorrido em compasso, este passeio dos olhos sobre a linha das colinas, a vegetação espessa, a água do riacho que corre sobre as pedras, o refeitório camponês, o dormitório silencioso e que se retrai sobre uma série de desenhos de Jaime? Cabeças vagamente aparentadas a perfis de Brauner, gatos ou animais, arredondados, dorsos musculosos, pêlos serrados como bolotas de lã, cuja silhueta faz aparecer sobre suas cabeças a imobilidade e a fixidez de um olho egípcio.

Um filme de Antonio Reis? Admirável poema, feito de deslocamentos de imagens e de coisas, deslocamentos efetuados sobre o que resta. O que resta não é a causa do que parece concluir a obra desenhada de Jaime. Todas as coisas mostradas são como pedras semeadas por uma criança perdida, não os marcos de seu caminho de retorno mas os signos traçados, semeados de seu abandono. E até mesmo o olho vívido, móvel, úmido da cabra, enclausurada numa espécie de tricot feito da lã de seus pêlos. Extraordinária inteligência do desespero e do quimérico que presidem aos jogos das crianças. É o que Paracelsus nomeava a prima matéria: “Ela é visível e invisível, e as crianças jogam com ela na rua”.
O que constitui este filme é coisa muito distinta de uma memória ou progressão de imagens, ou mesmo este perpétuo desenvolvimento de encadeamentos fatais de ações humanas que conduzem ao túmulo, às bordas de um abismo ou aos limites de uma terra habitada onde cessam ( em todo filme) as ações, as palavras e até mesmo a possibilidade de sugestão das imagens.
O que este filme mostra com força ( a força das coisas conjuntas, como paisagem, interior, décor) não é nem um processo, nem uma explicação ou denunciação do sistema carcerário do hospital; as coisas que se sucedem como imagens ( o plano vazio, a fonte, a taça e sua colher, a máquina de costura, o guarda-chuva, os homens e suas sombras,a pobreza do hospital e da paisagem) são encadeadas sem causa. Todas constituem coisas sem ação; isoladas como objetos encontrados ao acaso; se os filme as encadeia ou enumera, elas se adicionam em uma soma misteriosa da qual não resultam estes corpos negros, cerrados, duros, compactos, e no entanto de uma armação tecida sem falhas, os estranhos animais de Jaime, ou gatos advindos de um outro mundo, cujas fronteiras eles parecem guardar.
Pois é preciso velar por. O que faz aqui Antonio Reis? Ele não explica uma obra; ele ilumina um pouco mais, por uma extraordinária contenção de seu tema ( algo assim como um deserto) a magia e ambigüidade do cinema. Capto rapidamente que esta câmera que estreita o real possui, no próprio movimento de seu cadre, na mobilidade flutuante de seus travellings em diagonal ( os corpos das pedras, o fluxo da água, o roçar das ervas), neste círculo insensível que limita este mundo a um curto horizonte, delineando-se sinuoso sobre o dorso das colinas, integrado ao jato de água tremulante da fonte como à ponta de um compasso; compreendo que esta câmera se apossa dos corpos das coisas em seu abandono de objetos; a espécie de planalto desértico, de que estes corpos constituem a paisagem e a população, é um mundo do qual cada parte perdeu seu corpo; um mundo de metáforas errantes.
Não concordo que Antonio Reis filme ou fotografe naturezas-mortas (e, no entanto, ele o faz melhor que ninguém), mas que todas as partes deste mundo estão ao mesmo tempo isoladas e solidárias: que estes extraordinários portraits de gatos foram também passagens de silhuetas estendidas sobre os lençóis do hospital lançados ao vento, que estes animais ou estes homens, guardiões de um mundo desconhecido- e desconhecido deles mesmos- eram também estes dois ou três homens em pé, dançando num pé apoiado sobre o outro, alinhados sobre um banco de madeira como galinhas sobre um poleiro, e cujas sombras dançavam, balouçavam, se imprimiam apenas por um instante como um afresco provisório sobre a superfície côncava do árido branco do muro do hospital. O poleiro das sombras, a única galeria desta arena no centro da qual apenas um jorro de água se eleva perpetuamente, se estira para o céu e vacila indefinidamente, como o único relógio no coração deste mundo feito de círculos acumulados e sobre os muros sobre os quais estes se aninham, como as sombras dos homens arqueados ou suas figuras imóveis, os magníficos guardiões do Desconhecido a céu aberto.
Também não faço idéia de como esta pura obra-prima perpassa pelos objetos como um sopro desenfreado de viração; o que sabemos desde a infância: as coisas, os objetos, as distâncias que os separam não são feitos para nós. Estes corpos abandonados são metáforas vagabundas: foram o corpo de nossa solidão.


Jean Louis Schefer, Revista Cinémathèque, número 13, páginas 4-7. Primavera de 1998.
Tradução: Luiz Soares Júnior