Poderíamos , depois da Revolta dos gladiadores, pensar o que quiséssemos de Cottafavi. Por mim, não pensava lá grande coisa. No entanto, a visão de Legiões de Cleópatra suscitou o prazer da surpresa, acrescido da satisfação singular que difundem em nós as obras que os autores tiveram um grande prazer em criar. Já havia na Revolta um senso seguro da cor, do gesto e da situação no espaço, mas que ali apenas davam- ou me pareciam dar- na criação intermitente do que se chama um “belo plano”. As mesmas qualidades aqui fazem mais do que unificar a anedota; elas a criam. Não se contentam apenas em ilustrá-la- elas a constituem e vão até o ponto de transformar a história que nos é contada em História.
As ligações entre as linhas e as tonalidades nesta
sequência de digressões, de fantasias sobre temas romanos, são em
si mesmas e em todos os sentidos do termo, uma trama. Criam uma
linguagem imediata onde o signo nos basta, por conter em si a
expressão total do que é. O papel desta linguagem aqui é imprimir
diretamente em nós este sentido da História mítica que, mais
verdadeira que a verdadeira História, tem necessidade para ser
traduzida da supra-verdade de uma linguagem “colorida”, que
reencontra os valores mágicos, místicos da linguagem
pré-conceitual. É a “romanidade” lendária, encontrada pelos
meios que criaram o “americanismo” lendário do western. O gesto
elementar do herói de epopéia, relocado na rede de rimas,
assonâncias e correspondências que devem lhe conferir toda a sua
ressonância, já constitui em si uma Gesta.
Com frequência- e abusivamente- aproximou-se dos
westerns uma série de filmes de ação que só entretinham com este
semelhanças superficiais. Aqui, pela primeira vez talvez na Europa,
estamos diante de um filme profundamente “westerniano” em seu
espírito e linguagem, em sua forma de apreender as relações
humanas por meio de uma totalidade brutal em que todos os elementos
são provocantes e só toleram- covardia ou heroísmo- as peripécias
mais extremadas.
Semelhante visão do mundo exclui tanto a ironia quanto
o distanciamento, mas não o humor, nem o traço dito “forçado”,
nem sobretudo um certo sentido do 'absurdo': trata-se, em suma, de
captar a desenvoltura dos fatos.
O extraordinário início do filme já o traduz. Aos
créditos se sucedem três cartões preenchidos até a borda de
informações históricas. Isto serve de introdução a exuberantes
variações sobre o modo de ser da multidão que se agita nas ruas e
nas tavernas com brigas, discussões, vadiagens casuais, e sobretudo
rondas pelo mercado dos escravos. Um diálogo apanhado no ar se
incorpora aos gestos como uma dimensão suplementar de sentido. Para
ficarmos no mercado: “Este se destina a um outro uso”, diz o
mercador, apresentando um jovem rapaz, depois de ter louvado as
qualidades de uma mercadoria feminina. Aqui, como sempre, é ao se
abandonar constante e totalmente à alegria de dizer e de mostrar que
Cottafavi consegue concentrar no mínimo de tempo o máximo de
significação.
Neste jorrar contínuo, este ardor exuberante de ideias,
de achados, seria fácil achar outros lances de gênio, senão para
demonstrar, ao menos pelo prazer de contar ( e esta seria talvez a
melhor forma de chegar a uma demonstração), mas renuncio. Notarei,
no entanto, a trajetória desta flecha cuja partida e chegada são
classicamente filmadas em planos separados e onde subitamente, por
efeito de uma reviravolta que representa tanto uma piscadela de olho
para nós ( clin d'oeil) quanto o sentido mais esmerado do crescendo,
Cottafavi nos mostra por fim no mesmo plano a chegada e a
partida.
De Cleópatra direi algo também.
Dela, só víramos num primeiro relance os olhos incorporados à
máscara de uma estátua; mas quando, na cena na taverna, vemos a
dançarina mascarar seu rosto com as mãos, só deixando aparecer os
olhos, somos maliciosamente levados a identificar à bela princesa do
palácio a mulher que acabara de se dar ao desfrute nos inferninhos (
bas-fonds) da cidade.
Falei no começo de “linguagem
pré-conceitual”. Ilustremos esta dimensão do filme. Depois do
diálogo de Augusto, em toga branca, sob uma noite constelada de
fogos, uma legião desgrenhada introduzirá em diagonal as legiões
brancas de César nas legiões encarnadas de Antônio, o republicano,
que ao cair da noite acabarão aprisionadas em um círculo de fogo.
Vários desvios, um único movimento.
Estranhos orifícios nos muros, pelos quais a voz se introduz para
estabelecer insuspeitáveis comunicações. Através dos quais nós
também parecemos passar , graças a um extraordinário movimento de
câmera, por simples que seja. Simples também é esta forma que a
câmera tem de selecionar, durante um diálogo, os interlocutores
presentes, alternando recuos e precipitações que possuem a harmonia
de uma respiração.
Uma harmonia que não teme de forma
alguma a ofegância das corridas sincopadas, entremeadas de paradas
súbitas, de saltos ou de retornos- que sabe o preço destas
excrecências vitais a que se chama de “tempos mortos”, mas teme
a morte induzida pelo excesso de languidez. Mal estes intermináveis
e clássicos diálogos de amantes , -necessários tempos fracos que é
preciso introduzir em todo filme de ação-, parecem se instalar no
filme, “cut!”, voltamos novamente à ação.
Menciono para terminar a sensacional
interpretação de uma insólita Cleópatra e de um carro puxado por
dez cavalos. Cleópatra morrerá sobre seu trono, petrificada sob a
máscara da realeza, depois de Marco Antônio ter transformado sua
morte em uma admirável sinfonia em vermelho, onde despejou tudo o
que possuía de heroísmo e desespero.
Pois também há isto: Marco Antônio e Cottafavi souberam encarar a morte como poetas e republicanos.
Michel Delahaye
Cahiers du Cinéma, 111. setembro
1960.
Tradução: Luiz Soares Júnior.