quinta-feira, 15 de dezembro de 2011
Um corpo que cai: O retrato.
O filme: alegoria da máquina cinema. Do inacabamento
Se fosse possível delinear um dos menores denominadores comuns da arte moderna, eu designaria a noção de inacabamento, que me parece ser uma das inquietudes comuns aos grandes inventores de formas no século 20. O que distingue nosso século dos precedentes é a maneira pela qual esta inquietude se inscreveu na matéria da obra e a consciência do artista. De Mallarmé a Nietzsche, de Cézanne a Pollock, de Artaud a Guyotat, a sensação de acabamento de uma obra, a evidência de harmonia ligada à sua finitude e a necessidade social de terminar foram estilhaçadas, voluntária ou involuntariamente De Leiris a Blanchot e Gombrich, uma literatura critica tentou teorizar este processo de múltiplas formas.
É difícil imaginar que o cinema tenha podido conhecer obras cuja dramaticidade resida na inacabamento comparável ao Pierrot de Picasso, ou às suspensões poéticas e tipográficas de Mallarmé. Desde a Nouvelle Vague, a relação que um cineasta entretinha com seu filme foi sensivelmente modificada. Entre outras razões, as relações de roteiro inicial e do filme final foram abaladas pelas improvisações de um Godard ou um Rivette. Cineastas como Godard e Rivette, mas também Garrel, Akerman, Wenders e Ruiz, entre outros, inscreveram a “indecidibilidade” no núcleo de seus roteiros e mise em scène, na filmagem e na montagem.
Quando e por que acabar? Quando e por que cortar ou deixar durar uma cena ou plano-sequência? Dramatizar as ausências ( manques) por meio de elipses narrativas, diferir o fim de um desejo ao deixar irresoluta uma ficção, abrir uma obra para que, por este fracasso que constitui o inacabamento, a vida se infiltra e termine ela mesma o trabalho. Utopia moral e escolha de estilo. Mas não se trata ainda de constatar o abismo que separa a representação e um real desejável? O caráter de vestígio de certos filmes ou sua forma “em estilhaços” ( encontrados no ferro-velho, como diz Godard) seriam os destroços da experiência deste abismo.
O risco de não terminar um filme ou um livro é uma preocupação rara em matéria de discurso estético. O talento só se reconhece a partir da condição mínima a ser preenchida da obra como objeto acabado, dotada de uma existência em si, que exclui a suspensão, a hesitação, a abertura. Dito de outra forma: é preciso que a obra seja fechada ( bouclée), e a determinação econômica do cinema autoriza pouco o inacabamento. Produção, distribuição, difusão são fases que asseguram a rentabilidade de um produto encarregado de satisfazer um público para o qual a menor das qualidades esperadas consiste justamente em um acabamento técnico e um domínio ficcional, um “fechamento”.
No entanto, embora sua história seja curta em relação à de outras artes, o cinemas atravessou os mesmos questionamentos dos hábitos e rotinas estéticas. É ao mesmo tempo com atraso e ainda mais rapidamente que as questões que tocaram outras artes se apossaram do cinema. As transformações da representação linear, representadas de forma irremediável pelo cubismo nos anos 10, não tiveram consequências imediatas no seio da práxis cinematográfica 1, comparáveis à arquitetura, escultura ou até mesmo a moda. O cinema estava na condição de constituir uma relação especular com o real. Seria preciso esperar a segunda metade dos anos 30 para que as representações parciais e as simultaneidades de ponto de vista impostas pelo cubismo irisassem a representação cinematográfica, com Welles e Renoir. A Abstração figurativa da mesma maneira influenciou tardiamente o cinema (as escolas underground do pós-guerra); as experiências fílmicas dos anos 30 eram mais ligadas às correntes formalistas e futuristas destes anos, cujos valores mecanicistas implicavam naturalmente que o artistas se apossassem do cinema ao mesmo tempo.
Em cem anos, o cinema parece ter “atingido”a atualidade das questões modernas da arte. Sem dúvida, porque o ritmo destas questões postas- e resolvidas provisoriamente- acelerou-se num mundo de comunicação intensificada, mas também porque o cinema provavelmente beneficiou-se da experiência das outras artes num contexto de forças produtivas intelectuais desenvolvidas. O que pode desta maneira explicar a relativa sincronicidade do cinema de Godard de 67/68 com a introdução da Pop art na França, ou a emergência das narrativas inovadoras da Nouvelle vague e a proximidade do Nouveau Roman em meados dos 50? Não há portanto razões que se oporiam em princípio a uma confrontação do cinema ao inacabamento que encontramos com tanta freqüência em outras artes.
Louis Feuillade: o final diferido
Pode-se emitir a hipótese de que Feuillade, ao mesmo tempo em que inventava estratégias ficcionais de que o cinema clássico se nutriria mais tarde, minava- com suas Vampiras e Fantasmas- definitivamente a noção de uma ficção “fechada”. A tradição dos filmes em série e do folhetim relativiza, é claro, esta hipótese, mas não sentimos esta sensação de constante inacabamento nos filmes de Griffith ou naqueles de outros primitivos americanos, que concebiam com o folhetim uma estrutura de episódios relativamente fechados sobre si mesmos. É marcante constatar que o gênio de Feuillade residia tanto em sua capacidade de inventar novas aventuras para seus heróis quanto nos riscos que o autor tomava em relação à compreensão do espectador, ao diferir ad infinitum o desfecho da intriga, pouco preocupando-se com uma lógica dramática ou psicológica.
Jacques Rivette: as finalidades incertas
Já Paris nos pertence ( 1960) implicava um domínio cenográfico e urbano elaborado a partir de esbarrões, encontros e de enquêtes abortadas tão logo iniciadas. É esta sucessão de inacabamentos que, ao termo de um puzzle ficcional, reconstituía a lógica de um pesadelo. L’Amor fou e Out one são dois filmes exemplares da maneira anti-teológica com a qual Rivette se lança na concepção e realização de um filme.É em parte sem conhecer os fins dramáticos de sua ficção, que supõe-se serem geralmente definidas antes de se lançar na aventura do filme, que Rivette começa a rodar, arriscando na arena própria da rodagem as chances de “fechá-lo”. Como se para ele o fato de começar um filme fosse algo claro, mas as energias profundas que alimentavam a narrativa lhe fossem desconhecidas. Se o inacabamento constitui a matéria primeira dos filmes de Rivette, é no sentido em que Maurice Blanchot podia dizer que o processo de uma obra se encarna entre “a clareza do começo e a obscuridade da origem”.
Chantal Akerman: a fragmentação e a serialismo.
Esta clareza do começo pode explicar o prazer suscitado por um filme. O inacabamento deve encontrar uma parte de sua realidade na dolorosa dificuldade de concluir, de acabar ( d’en finir). Com o fim de um texto, é uma dimensão de si que morre: a energia que animava a escritura desaparece com seu fim. Como explicar de outra forma o que preside às ficções de Chantal Akerman, cuja vontade de fragmentação em Toute une nuit deve- ainda por cima- identificar-se a um sonho noturno cuja idéia de acabar esta não suportava conceber? Chantal concebe acabamentos provisórios, embora coerentes em si mesmos, e desvia assim a facilidade metonímica da narrativa cinematográfica clássica. O inacabado é assim o fator de invenção de uma outra tática de aproximação do real, tática ( démarche) poética que, mostrando as passarelas invisíveis, encadeando os múltiplos acidentes no seio da vida dos personagens que se desconhecem, propõe uma visão do mundo menos fragmentária do que as aparências permitiriam supor. É bem o inacabamento ficcional destes acidentes que permite em definitivo a possibilidade de interferências entre os fragmentos da narrativa. O Rendez-vous d’Anna não era já- num nível dramático mais do que formal- uma tentativa de mise en scène serial dos elementos da vida de uma personagem cujos múltiplos encontros remetiam sempre a uma fundamental decepção?
Philippe Garrel: a experiência dos limites.
Trata-se também de uma justaposição de fragmentos que parecem impregnar os filmes de Garrel. Se há um cineasta que entretém uma ligação íntima com o inacabamento é Garrel, mas de uma maneira contraditória, de tal forma o próprio princípio de sua filmagem repousa sobre a experiência dos limites das possibilidades materiais e temporais da película. Vontade de esgotamento de que podemos registrar no tempo um catalisador- e na luz uma película, que nos confronta à impressão de inacabamento de seus filmes. Em Elle a passe tant d’heures sous les sunlights, Garrel deixa na montagem definitiva os “claps”de eclosão do filme e os “cuts” bem definidos ao fim da cada fim de plano.
É este princípio que leva Garrel a mostrar a totalidade do que foi filmado, remetendo assim o filme definitivo a um singular encadeamento ( bout-à-bout) de rushes provisórias. Nada, num filme de Garrel, chega a constituir uma totalidade rígida, uma massa compacta, e no entanto tudo parece religado por articulações leves e móbeis, cujos pivots não são pensados enquanto tais pelo cineasta. Se há uma lógica entre as diferentes seqüências e os distintos momentos dramáticos do filme, estes são interiores à Garrel, e apenas se impõem poeticamente ao espectador pela intensa sinceridade afetiva do cineasta, sem o recurso a qualquer pretensa pontuação ou a “quedas” dramáticas que teriam por função fechar e articular harmoniosamente- habilmente- qualquer seqüência.
Esta característica de seu cinema produz uma sensação de “desajeitamento”( maladresse), que nos remete à infância. Esta relação entre a falta de jeito e a infância é tão evidente para Garrel que um bom número de seus filmes são ficções duplamente atravessadas pelo desejo da infância (e da criança) e a interrogação sobre as origens do cinema. Cada filme de Garrel tenta reinventar sem cessar o cinema, ou ao menos manifestar um constante maravilhamento diante do milagre de sua realidade. Esta magia perpetuamente revivida e dada a compartilhar ao espectador à ocasião de cada plano desvia Garrel da obrigação do acabamento ficcional. Como a matéria da película, esta magia devora a ficção.
Philippe Garrel é neste sentido um cineasta cruel, mesmo que esta crueldade se exerça sobre o corpo do próprio filme. É porque o espectador ressente certas ausências ou buracos ( manques) no seio de seus filmes que este é, senão perturbado, ao menos incomodado.A ausência- e trata-se com freqüência em Garrel de uma ausência que se exprime através de uma não conformidade entre a linearidade das narrativas e as aparências da realidade capturada- perturba, propicia mal-estar e designa às vezes explicitamente o objeto ou o corpo “que falta” sob a forma de uma elipse narrativa (como em Antonioni) ou sob a forma pura e simples de uma lacuna ficcional ( a “falta de jeito” de Garrel), de um buraco negro que provoca no espectador um sentimento de despudor.
Raoul Ruiz: a monstruosidade.
Sob a fascinação pelo inacabamento que anima a estética de Ruiz, oculta-se uma violência, uma tortura, uma monstruosidade. A virtuosidade cinematográfica de Ruiz advém provavelmente tanto de um talento incomum quanto de uma impotência tipicamente barroca em fixar um centro de gravidade formal a seus filmes. Esta virtuosidade decorre também de um exigente senso moral que o constrange a concentrar o máximo de pensamento e de signos, a fim de poder dar conta de uma realidade. O excessivo ( trop plein, cheio) e a profusão, que seus espectadores ressentem diante de seus filmes, engendram esta sensação de monstruosidade, tanto mais forte quanto mais o cineasta constrói com freqüência suas ficções a partir da busca de um objeto ausente (manquant) cujo exemplo mais célebre permanece o Quadro roubado.Uma forma ou um ser inacabados, mutilados, remetem sempre à monstruosidade.
Um filme de Ruiz possui a monstruosidade do leproso, a que faltariam os membros ou partes da epiderme. O cineasta introduz aliás em suas ficções visões de carnes decompostas ou roídas pelos vermes. Como não aproximar o inacabamento constitutivo das ficções ruizianas da dificuldade de Leonardo da Vinci em terminar seus quadros? Como não aproximar do pintor italiano, da mesma maneira, a ciência do desenho anatômico ( os amputados) dos inacabamentos pictóricos? Como não aproximar, enfim, dos closes de feridas em Ruiz os destroços carnais de Da Vinci?A monstruosidade não revelaria então a avidez por um excesso de real ( implicada aí justamente pela avidez da ciência anatômica?)
As construções dramáticas dos filmes de Ruiz tomam emprestado ao mesmo tempo da “vidência” rimbauldiana, da enquête policial, da pesquisa científica, à especulação metafísica... mas testemunham em definitivo um impossível acesso ao real, o ávido abismo do cinema de Ruiz. Maurice Blanchot descreve bem o que poderia ser o cinema de Ruiz: “Muitas obras nos tocam porque nelas vislumbramos ainda as pegadas do autor, que se distanciaram bem precipitadamente, na impaciência de terminar e no medo de- se não terminassem de terminar a obra- não poder retornar à vida. Nestas obras, tão grandes, maiores que aqueles que as carregam, sempre se deixa pressentir o momento supremo, o ponto quase central onde sabemos que, se o autor aí se mantivesse, morreria sob o peso de sua tarefa... Mas quantos outros, na irresistível atração exercida pelo centro, apenas conseguem se arrancar de suas obras com uma violência desarmônica; quantos deixam em seu rastro as cicatrizes de feridas mal curadas, os traços de suas sucessivas fugas, de seus inconsoláveis retornos, de seu ir e vir aberrantes. Os mais sinceros deixam abertamente ao abandono de nossos olhares a obra que eles mesmos abandonaram. Outros ocultam as ruínas, e esta dissimulação se torna a única verdade de seu livro” 3
Langdon e Duras: os corpos burlescos.
Esta abordagem do corpo que se verifica em Ruiz de maneira relativamente conceitual- mesmo que se exprima em closes terríficos de realismo ( por aí retomando a arte grotesca)-, encontramos igualmente na história do cinema sob a face do burlesco. Harry Langdon permanece o cineasta-ator que mais radicalizou a mise en scène de seu próprio corpo moribundo, regressivo, inacabado. Sua figura física- e as gags que esta propiciava- exploram todas as ambigüidades sexuais ligadas à indeterminação específica de uma idade situada entre o nascimento e a puberdade, que Langdon sempre se empenhou em mimetizar. É pouco imaginável que Langdon não tivesse consciência do sentimento de inacabamento que iria se produzir através de seu personagem, até os limites da homossexualidade e androginia. Mas a androginia não é a forma exasperada do inacabamento, que confina a perfeita complementaridade dos sexos no seio de um mesmo ser? Marguerite Duras sentiu bem em seu filme As Crianças o partido que poderia tirar do parti pris ( tomada de posição) de seu personagem principal, Ernesto, com o fito de colocar em crise o discurso totalizante da educação. Ernesto é um personagem diretamente saído do cinema burguês, criança sem idade e inadaptável.
Se fosse necessário paradoxalmente concluir, creio que poderíamos enviar a desconfiança e a fascinação conjugadas pelo que permanece inacabado à esfera do desejo. Inacabar não se trataria de uma atitude perversa que consiste em diferir ( adiar) a consumação de um desejo, com todos os medos que devem dele participar, medos ligados ao fracasso, à preguiça, e portanto ao dandysmo?
Notas:
1. Excluo aqui as raridades avant-gardistas de Fernand Léger, Ducgamp, Lazlo Moholy Nagy...
2. Para a qual a ausência de intertítulos não adiantaria de nada, logo que os folhetins foram redescobertos nos anos 60 na Cinemateca.
3. Maurice Blanchot, O espaço literário, Gallimard, coleção Idéias, 1973.
Dominique Païni. Le cinéma, un art moderne, 1997.
Tradução: Luiz Soares Júnior.
segunda-feira, 5 de dezembro de 2011
Nota
Traduzi dois textos - Biette e Bonitzer- que tocam num tema que me interessa atualmente e creio deveria interessar a todo cinéfilo, diletante ou não, que tenha abandonado a sala de cinema (ao menos como útero): o status atual da imagem (plano?) cinematográfico, com as tecnologias epocais vigentes, etc. Só imploro que respeitem meu trabalho por aqui e evitem fazer questões ou enviar duvidosos , embora creio que bem-intencionados-elogios- como tenho lido por aqui- de que “como vc escreve bem!” “legal seu trabalho”. Sou crítico de cinema, mas escrevo em outros lugares, Isto aqui é um blog de TRADUÇÕES, tão somente.. É isso. Só pra evitar aquela sensação desagradável que a gente às vezes tem de que está sendo feito de palhaço, e perdendo um cansativo tempo para nada, já que muitos leitores ainda não tem condições de distinguir uma criação original de uma tradição, mesmo quando esta vem com rodapé, citações, data da publicação, título original e autor no cabeçalho, etc. Não é um número majoritário, é evidente, mas elogiar por elogiar- sem ler- e ver que se tratam de traduções e não textos originais, não me interessa.
A maldição do fotograma
A superfície vídeo, por Pascal Bonitzer
O sucesso do cinema é ligado desde as suas origens ao fato de que este reproduz o movimento da vida, ou antes: ao fato de que ele é feito para isto. Nevoeiros, tremores de folhagens, nuvens, águas correntes, todos estes temas de interlúdios que são como o núcleo do cinema, sua besteira também se quiserem, mas sobretudo seu “grão” próprio. O grão da imagem cinematográfica é um grão fino, atmosférico, expondo em sua coexistência à luz as diferentes texturas da pele, dos tecidos, da pedra, das peles dos animais, das cascas, do polido dos metais e os fluidos, a fumaça, etc Esta coexistência imediata de matérias e essências diversas é a raiz do poder do cinema, o que se chama a impressão de realidade. A imagem é transparente, a película registra o jogo das luzes e das sombra; o trabalho não se faz na câmera enregistradora, mas antes ou diante ( a luz) e depois ( o laboratório). A realidade pode ser trucada a posteriori, mas ela está lá a priori, e é ela que se imprime e suscita impressão.
Já o vídeo funciona de uma forma totalmente diferente. A fita magnética opaca não tem nada a ver com a película transparente e sensível. O vídeo não truca a realidade ótica; esta opera em um outro domínio, é desde logo manual, ou antes “digital”. A imagem é de antemão suscetível de se decompor ao infinito; ela abrange quase que naturalmente um tratamento não figurativo. A imagem não possui grão uniforme; ela se compõe de pontos a partir de cada qual é possível, graças ao tratamento numérico, ao efeito Squeeze Zoom ou Quantel, desfazê-la, anamorfizá-la e metamorfoseá-la.
A metamorfose é o regime natural do vídeo; ela não tem portanto nenhuma ligação natural a uma qualquer realidade; as noções de plano e de campo não lhe são pertinentes, já que estas ( do vídeo) possuem uma significação puramente ótica. O espaço do vídeo é pura superfície; é por isso que se fala da imagem eletrônica não de “mise en scène”, mas de “mise en pages”. Não há profundidade estratificada em uma escala de planos, nem coexistência mais ou menos conflituosa- e portanto, propícia à narrativa, ao conto, ao drama- de corpos, mas uma incrustação sem conflito, um jogo de papéis recortados ( découpés), como se todos os corpos estivessem liberados da profundidade e do peso, e se distendessem sobre a superfície como cartas.
O cinema é uma arte do próximo e do distante, e de todos os sentimentos que os implicam: amizade, amor, ódio, inquietude, angústia, fobia, terror, horror, desejo, excitação, nojo... No vídeo, não há nem o próximo nem o distante, tudo é ao mesmo tempo próximo e incomensurável; Averty pode fazer Tino Rossi dançar umas 33 voltas sobre o fundo do oceano, mas podemos falar, em um jogo de tal ordem, em superfície e fundo? A imagem é liberada da perspectiva. Os corpos são liberados de todas as emoções, de todas as inibições. O espaço é de antemão jogo colorido ( o vídeo em preto e branco não possui nenhum sentido, a não ser como truque especial de cinema), eufórica, leveza ou indiferença, doce psicodelia.
No cinema, um buraco é sempre dramático. É um poço, uma ferida, uma fechadura onde se imiscui o olho do voyeur ( e onde o paranóico, como em El, insere uma longa agulha vingadora), é o buraco da banheira para onde converge o sangue, que desaparece em turbilhão ( Psicose); é uma boca que se abre sobre um grito, é a caixa do elevador onde a vítima é empurrada, é o impacto da bala entre os olhos, as órbitas sanguinolentas do cadáver; é a boca do aspirador que aspira todo um magazine ( Um chef de rayon explosif), é um buraco negro, um ânus, um sexo exposto, um ventre entreaberto, um abismo. Não há um buraco em vídeo, ou antes: só há buracos, superfícies rasuradas, incrustaáveis ao infinito. Todos os buracos são sempre tapados pelo que vem aflorar à superfície; não há buraco, só há incrustações, flores que vem eclodir no lugar dos olhos, um nariz que emerge sob a boca, um coelho no pavilhão da orelha, e o todo em música, música e musak. Não há vazio em vídeo, a imagem é um formigamento de pontos animados- pela incessante vibração eletrônica-, um espaço de incessante pulsação.
Não há atores em vídeo. O ator é a própria imagem, a imagem que faz a histérica ou a esquizo, que se metamorfoseia e que pulula. O cinema leva a sério a metamorfose mas também o que Elias Canetti chama “enantiomorfose”; a ação de desmascarar, de reconduzir a uma identidade primeira toda a série das figuras enganadoras. Lang, Hitchcock: pastiches, glacês sans tain1, identidades falsas, “invraisemblables verités” 2, máscaras diversas.
No cinema, os eventos são sempre no fundo irreversíveis, e mesmo os efeitos de “retour em arrière”3 se encarregam de prová-lo. Nada é irreversível em vídeo, pois tudo é circular e sem conseqüência, os corpos incorporais plastificados se desfazem e se reconstituem ao sabor da “mise en pages”. O vídeo é Alice, que corre sobre o espaço, se desdobra, se alonga, cresce e diminue. Alice não é um personagem de cinema, porque no cinema os truques devem ser realistas, e o realismo não tem nada a fazer na história. O vídeo não possui maquinário, nada de mundo-aquém, nada de realidade enganadora ou falsa, porque não possui realidade, ou infimamente.
Não há sombras em vídeo. A mise en pages faz-se obrigatoriamente com luz direta, o plano dianteiro sempre iluminado da mesma forma ( um pouco mais sombria) em relação ao segundo plano ( arrière-plan) azul e brilhante, que é o suporte das incrustações. O vídeo conhece as diferenças entre as cores, mas ignora as variações de iluminação.
O vídeo não conta uma história; ele desenvolve um pequeno poema visual, um haïku ( ou antes, filosofa sobre o visível, como em Godard). Poemas, haïkaï: as metamorfoses sintéticas do admirável Sunstone, de Ed Emshwiller ( mas se trata de um caso particular, as imagens informáticas). Um deslumbrante vídeo filme sobre Grace Jones. Grace Jones é um corpo ideal para o vídeo, um corpo artificial, brilhante, leve, improvável, de clown andrógina glacial, de Pierrot negro. É uma paródia de star e o contrário de uma star, pois ela não sugere nenhum drama, nenhum perigo, nenhum terror ou frisson.
Os vídeo filmes só são suportáveis quando curtos; rapidamente, eles saturam a atenção. O suporte película talvez não seja, como diz George Lucas, “apenas um estúpido material, típico do século 19”; o suporte magnético é sem dúvida um material sofisticado, fiável, digno do século 20.
Pobre século 20.
Notas:
1 Espelhos cuja superfície refletora permite que qualquer pessoa postada atrás dele veja sem ser vista. Como na cena do hotel, no Mil olhos do doutor Mabuse ( 1960).
2. Título francês do penúltimo filme americano de Fritz Lang, Beyon a reasonable doubt (Suplício de uma alma).
3. Retomar/retornar ao princípio.
Pascal Bonitzer, Le champ aveugle. Essais sur le réalisme au cinéma.
Tradução: Luiz Soares Júnior.